Políticos, celebridades, influencers das redes sociais e até equipas da NBA já conseguiram ser testadas para o novo coronavírus. Tudo seria normal se, no reverso da medalha, não estivessem milhões de outros norte-americanos “normais” a ver o acesso aos mesmos testes ser-lhes negado.

O tema do acesso aos testes para o novo coronavírus tem sido fraturante no contexto da batalha norte-americana contra a covid-19. Primeiro foram os problemas com alegados exames defeituosos. Agora é esta desequilibrada distribuição de acesso que está a gerar tensão, ainda para mais porque algumas dessas “celebridades” nem sequer apresentam apresentam sintomas de uma possível infeção.

Com o número de testes ainda a ser escassos em muitas áreas dos EUA, a impossibilidade de diagnosticar eventuais infetados tem sido um grande problema para  os profissionais de saúde. Não é de estranhar, portanto, que episódios em que figuras públicas ou milionários são diagnosticados quase on demand estejam a ser classificados como provas de elitismo e de tratamento preferencial de umas pessoas em detrimento de outras.

A atuação de Trump perante o flagelo da pandemia tem estado constantemente debaixo de fogo e a forma como o presidente norte-americano se pronunciou sobre este tema em específico, numa conferência de imprensa na passada quarta-feira, só serviu para atiçar ainda mais a indignação perante esta realidade. Quando questionado sobre se reconhecia que “os bem conectados” estavam a ir “para a frente da fila”, Trump disse:

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Tem de lhes perguntar isso. […] Talvez essa seja a história da vida. Isso acontece ocasionalmente e notei que algumas pessoas foram testadas rapidamente”

Só dentro da liga norte-americana de basquetebol, por exemplo, oito equipas inteiras já foram testadas. Bob Myers, responsável pelos Golden State Warriors, disse considerar injusto que os seus jogadores tivessem acesso preferencial: “Fomos informados de que os testes são escassos”, disse Myers ao The New York Times antes de continuar a explicar que, por esse motivo, nenhum treinador, jogador ou membro dos Warriors seria testado a menos que evidenciasse sintomas. “Não somos melhores nem piores que ninguém. Somos só uma equipa de basquetebol”, explicou.

Por outro lado, no mesmo dia em que Bill de Blasio, o mayor de Nova Iorque, fez um post na sua conta de twitter a criticar os Brooklyn Nets por terem sido todos testados, quatro foram foram confirmados como infetados (só um deles apresentava sintomas).

Desejamos-lhes uma rápida recuperação”, escreveu Blasio. “Mas, com todo o respeito, toda uma equipe da NBA NÃO deve fazer o teste para COVID-19 enquanto houver pacientes gravemente doentes aguardando para serem testados. Os testes não devem ser para os ricos, mas para os doentes.

Um problema generalizado

De forma geral, o acesso tem-se mostrado desigual um pouco por todo o país, mesmo tendo em conta que as diretrizes das autoridades sobre quem deve ser ou não testado se tenham tornado mais abrangentes. Também a capacidade de fabricação de testes em laboratórios tem aumentado.

Nas áreas do país onde o vírus demorou a aparecer, muita gente foi conseguindo ser testada com relativa facilidade, contudo, em Nova Iorque, Califórnia, Washington e Massachusetts, os estados onde o vírus se espalhou mais rapidamente e a procura por testes é mais alta, a situação está a ser muito complicada.

O Departamento de Saúde da cidade de Nova Iorque ordenou que os médicos apenas solicitassem exames para pacientes que precisassem de hospitalização. Pessoas com sintomas leves estão a ser instruídas a adotar uma rígida quarentena doméstica e até os profissionais de saúde, que têm um alto risco de contrair e transmitir o vírus, têm tido problemas a conseguir ser testados. Pelo twitter, já há várias semanas que circula a hashtag #CDCWontTestMe (“A CDC não me quer testar”, traduzido para português).

Como previsto, o #COVID19 está a expor todas as desigualdades sociais”, escreveu Uché Blackstock, um médico de urgência no Brooklyn, no twitter. “É preocupante para mim 1) ter que racionar o teste para o #COVID19 com os meus pacientes e 2) ter que esperar 5 a 7 dias pelos resultados, quando celebridades estão a ser testadas com facilidade e rapidez.”

Até polícia em várias partes dos EUA têm expressado grande preocupação pelo facto de, também eles, não estarem a conseguir ter acesso a testes.

“O mais frustrante é que continuamos a ouvir que não há kits de teste disponíveis mas somos obrigados a continuar a atender as solicitações de serviço, isto enquanto atletas profissionais e estrelas de cinema estão a ser testados sem sequer demonstrarem algum sintoma”, disse Eddie Garcia, o chefe de polícia de San Jose (Califórnia), ao NYT.

Heidi Klum e outras celebridades “privilegiadas”

A elite de Hollywood — estrelas de cinema, agentes e executivos — têm médicos disponíveis quase 24 horas por dia, sempre à distância de um telefonema, e já estão habituados a receber tratamento preferencial em centros médicos de Los Angeles como o hospital Cedars-Sinai e o Ronald Reagan UCLA Medical Center. Mesmo assim, esta classe social tem expressado alguma frustração com a incapacidade de fazer o teste devido à falta de kits. A modelo e apresentadora Heidi Klum, por exemplo, é uma dessas pessoas: num vídeo que publicou no Instagram (e que entretanto deixou de estar disponível) afirma ter tentado obter o exame junto de dois médicos mas não teve sorte. “Eu simplesmente não consigo um”, afirmou. À conta dessa publicação, um dia depois voltou a essa rede social para dizer que “finalmente” tinha sido ser testada e que o veredicto era negativo.

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Like many of you, I also have been sick all week and, unfortunately, my husband who returned from his tour a couple of days ago is also feeling ill. To be safe, we are staying apart until we get the results of our Coronavirus tests (that we were finally able to get today) back. We don’t want to spread germs and risk others getting sicker… even each other! As much as I want to embrace him and kiss him, it is more important to do the right thing and not spread further. ❤️ These are strange times… but in these moments, you remember what’s really important- the people you love and keeping them safe. Social distancing is what we all need to do right now to be responsible citizens of the world. We are all in this together and it is up to us to protect our loved ones, and our neighbors and our communities. Please listen to the officials and stay at home if you can and physically distance yourself from other people… especially if you are not feeling well. I see all the beautiful things people are doing for each other all over the globe and that gives me hope! Sending all of you love and positivity and healing vibes… together we can get through this but we need to be proactive so that we can all have a bright and healthy future. ????????✌????????❤️ #socialdistancing #washyourhands #stayput #bekindtoeachother

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Esta segunda-feira, por exemplo, a influênciadora nova-iorquina Arielle Charnas (tem mais de 1,3 milhões de seguidores no Instagram), fez uma publicação onde dizia estar a ter dores de garganta e febre. Foi-lhe dito que mesmo assim não preenchia aos critérios necessários para se ter acesso a um teste e que deveria tratar os seus sintomas em quarentena doméstica. Contudo, na sequência dessa publicação Charnas disse ter sido inundada por mensagens dos seus “fãs” a dizer que tinha de ser testada. Vai daí decide identificar o seu amigo médico Jake Deutsch, fundador da Cure Urgent Care, que imediatamente aceitou testá-la.

Numa série de vídeos Arielle Charnas foi documentando tudo, até a forma como recolheram amostras biológicas sem que tivesse de sair do carro. No final voltou a identificar a conta de instagram de Deutsh a agradecer a sua ajuda. Um dia depois recebeu o resultado positivo:

Sei que muitas pessoas na cidade de Nova Iorque e em todo o país não têm a capacidade de receber assistência médica imediata ao primeiro sinal de doença, quando o acesso à assistência é a prioridade número um num momento como este”, escreveu.

Deutsch acabou por revelar que tinha feito uma parceria com dois laboratórios particulares, a BioReference e a Lenco, para oferecer testes. Nos últimos três dias a sua clínica examinou quase 100 pacientes e metade dos quais deram positivo.

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O vírus chegou ao Capitólio

Neste momento já são contabilizados como infetados quatro senadores e quase uma dúzia de membros da Câmara dos Representantes que optaram por se colocar em quarentena após uma possível exposição ao vírus. Desses, aqueles que consultaram seus médicos pessoais ou o médico assistente do Congresso foram, de forma geral, desaconselhados a fazer o testes enquanto se mantivessem sem sintomas.

“Todos os médicos que consultei disseram-me que como não tinha sintomas e não estava doente, os testes seriam medicamente ineficazes”, explicou o senador Ted Cruz, em entrevista à ABC News.

Apesar desses exemplos, houve quem fosse testado. Muitos deles são aliados de Trump: como o senador Lindsey Graham, republicano da Carolina do Sul e parceiro de golfe do presidente; Mark Meadows, republicano da Carolina do Norte e novo chefe de gabinete da Casa Branca; e Matt Gaetz, republicano da Florida que soube que tinha sido exposto ao vírus quando embarcou no Air Force One na semana passada, para voltar a Washington na companhia Trump. Todos os testes destas pessoas deram negativo. nenhum deles revelou ao NYT pormenores sobre as circunstâncias de seus testes, incluindo quem os encomendou e onde foram realizados.

Gaetz, contudo, disse no twitter que tinham sido responsáveis médicos da Casa Branca  que lhe disseram que tinha de ser testado, não porque estar no Congresso mas porque tinha estado em contacto próximo com o presidente Trump durante vários dias.

O problema da NBA

Apesar de todos estes exemplos, a NBA é que está a ser o principal centro da polémica desde que dois jogadores dos Utah Jazz deram positivo. Desde então o número de resultados positivos aumentou para sete, entre eles a super-estrela Kevin Durant, dos Nets. Dezenas de outros atletas, porém, foram testados.

Adam Silver, o comissário da NBA, reconheceu as críticas de que a liga tem sido alvo num entrevista exibida na passada quarta-feira na ESPN. Mesmo assim, garantiu que todos os testes foram feitos sob a direção das autoridades de saúde pública.

“Deixe-me começar pela situação em Oklahoma City”, disse. “Os Utah Jazz não pediram para ser testados. O representante de saúde pública de Oklahoma não só exigiu que eles fossem todos testados, como não permitiu que nenhum deles deixasse o vestiário. Ficaram lá pelo menos quatro horas depois do jogo ter terminado, sempre de masca.” Apesar das explicações que tem vindo a dar, a NBA nunca revelou como teve acesso aos testes.

Wendy Bost, a porta-voz da Quest Diagnostics (um dos maiores laboratórios comerciais dos EUA), explica que várias organizações lhes pediram ajuda por causa de testes e que, entre essas organizações, estavam algumas equipas desportivas. Garante também que só aceitaram fazer em casos de equipas que tinham pelo menos um caso diagnosticado.

O The New York Times teve acesso a uma série de documentos internos da NBA que instruíam todas as equipas a identificar postos de testes próximos das suas sedes para que os seus jogadores pudessem inscrever-se para realizarem os testes. Mesmo assim, as abordagens adotadas variaram, escolheram não verificar os seus atletas.

Uma porta-voz dos Brooklyn Nets afirmou que os testes feitos pela equipa foram obtidos através de uma empresa privada, para evitar o uso de recursos públicos, e os mesmos só foram feitos depois de notarem que vários atletas e funcionários apresentavam sintomas. A própria equipa defendeu-se ao afirmar que se não tivessem sido testados e continuassem a fazer a sua vida normal corriam o risco de contaminar as suas famílias, amigos e fãs.