Tirou uma graduação em psicologia, tornou-se a primeira mulher a ocupar um cargo de topo como programadora, arriscou tornar-se empresária por conta própria a partir de casa, lançou uma empresa que se especializou em criar sistemas e software de encomendas e reservas, foi distinguida por várias publicações como role model. Sem ter propriamente uma grande fortuna para começar, Ann Budge estava ainda a caminho daquele que seria o maior desafio de todos: enquanto diretora da BIDCO 1874, um consórcio feito para tentar resgatar o seu Hearts do domínio estrangeiro, tinha de negociar a compra da maioria do capital de um clube. E conseguiu.
2004 foi o ano que marcou uma nova moda no futebol, com alguns oligarcas russos a começarem a investir a sério em clubes europeus. Vladimir Romanov, ainda que numa escala diferente, foi um deles. O Hearts, que também estava numa grave depressão financeira, passou a ser detido pelo investidor russo com nacionalidade lituana. E chegou a sonhar, com um segundo lugar em 2006, ano em que ganhou a Taça da Escócia (que viria a conquistar também em 2012). Nem tudo eram boas notícias, de novo por motivos económicos, mas o colapso do Ukio Bankas tirou quase tudo a Romanov. Mais uma vez, o conjunto de Edimburgo estava numa encruzilhada. Budge, através da BIDCO 1874, chegou-se à frente. E com um propósito muito concreto: liderar o clube num cargo executivo sem vencimento e entregar o clube cinco anos depois à Foundation of Hearts, que entretanto juntou a verba para ficar com a maioria das ações. Algo que vai acontecer. Algo que iria já acontecer.
Em fevereiro, foi anunciado que a Foundation of Hearts tinha não só reunido 2,5 milhões de libras para “pagar” à BIDCO 1874 a verba investida em 2014 e assumir 75,1% do clube mas também mais três milhões de libras para fazer obras de melhoramento no estádio, o Tynecastle Park, em Gorgie. E com outro ponto importante: Ann Budge continuaria à frente da liderança do emblema escocês. Agora, tudo mudou. E aquela que um dia foi descrita como a Dama de Ferro do futebol nacional pela recuperação feita no Hearts está no epicentro de uma revolução que parece cada vez mais inevitável a breve prazo a nível mundial em todas as atividades, incluindo o desporto. E tudo pode ser resumido num comunicado emitido na manhã desta quinta-feira no site do clube.
Primeiro, o contexto. “Vivemos tempos sem precedentes e de desafios nesta fase. A minha prioridade é a saúde e o bem estar nas nossas pessoas e faremos tudo o que estiver ao meu alcance para manter o clube a salvo e também financeiramente estável. A Liga Escocesa está suspensa, não existe qualquer data de regresso e é provável que nem volte até julho ou início de agosto. Além disso, as recentes medidas governamentais terão um impacto grande em todos os negócios. Há duas consequências principais para o clube: não existirão receitas de bilhética nem direitos televisivos enquanto a competição estiver suspensa; é improvável que exista algum tipo de receita das fontes extra jogo, como eventos ou bar. Esta quebra não é sustentável se não agirmos de imediato”, defende.
Depois, as medidas. “Por forma a prevenir um programa de rescisão coletiva e para protegermos o máximo de postos de trabalho possível, proponho que se implemente no clube um programa de redução salarial. Assim, pedimos a todos os nossos empregados, diretores, treinadores, jogadores e pessoas do staff, com efeitos a partir do início de abril, para aceitarem um corte de 50% no salário com três salvaguardas: nenhum dos funcionários full time baixará do salário mínimo nacional; dada a incerteza de toda a situação que nos apareceu, não poderemos dizer quanto tempo estas medidas serão aplicadas mas iremos de forma contínua daqui para a frente fazer revisões; qualquer pessoa do staff ou jogadores que se sinta indisponível ou incapaz de aceitar essa revisão dos seus contratos terá a opção de terminar o vínculo com o clube”, salientou.
A ideia ganha um peso especial depois do estudo apresentado pelo KPMG, que calcula um total de perdas na ordem dos quatro mil milhões de euros só com a suspensão das cinco principais ligas, de Inglaterra, Espanha, Itália, Alemanha e França. Aliás, só a Premier League teria quebras de receitas de 1,250 mil milhões. Outros países, como Portugal ou Escócia, terão valores de queda mais modestos mas, em termos percentuais, semelhantes ao top 5 dos campeonatos. Direitos televisivos (a maior fonte de receita) e marketing, comercial e merchandising são os principais prejudicados, com Real Madrid e Manchester United entre os mais afetados.
Já antes, mas num plano desportivo, Ann Budge tinha ameaçado avançar para os tribunais caso o Hearts, atual 12.º e último classificado do Championship (primeiro escalão escocês), fosse automaticamente despromovido – e também aqui, caso não existam datas possíveis para jogar o que resta da competição, poderá servir de precedente para outras ligas. “As regras dizem de forma muito clara que a temporada tem 38 jogos. Nós não jogámos 38 jogos. Não penso que possamos chegar ali e dizer ‘Vamos deixar as coisas como elas estão’. Existem muitas outras opções. Aliás, nem percebo quem ganha com isso. Iremos para os tribunais”, revelou na última segunda-feira.