O Demandante, Rafael Leão, pedia não só que a rescisão unilateral de contrato fosse aceite mas ainda um valor de 390 mil euros de indemnização. A Demandada, Sporting SAD, queria que essa quebra de vínculo não fosse aceite e, como tal, queria o pagamento de 45,3 milhões de euros – que, pelo Regulamento de Processo e de Custas Processuais no Âmbito da Arbitragem Voluntária, subiu para quase 45,7 milhões. No final, ambos acabaram por ser condenados a pagar algo mas longe daquilo que cada um tinha pedido no início do processo.
Os fundamentos de Rafael Leão e do Sporting foram parcialmente aceites, com os leões a serem condenados a pagar 40 mil euros ao jogador pela prática de assédio moral e o jogador a ser condenado a pagar 16,5 milhões de euros pela rescisão ilícita do contrato desportivo, além da divisão das custas do processo. E esse valor a que se chegou é fundamentado na decisão revelada no final da última semana pelo Tribunal Arbitral de Desporto, com os árbitros Jerry Matos e Silva (por Rafael Leão), Nuno Lamas de Albuquerque (pelo Sporting) e Sérgio Castanheira (árbitro presidente que foi designado pelos demais árbitros) a que o Observador teve acesso.
“O valor inscrito numa cláusula de rescisão de € 45.000.000,00 (quarenta e cinco milhões) inserida num contrato de um atleta que prevê o vencimento de cerca de € 5.000,00 euros mensais ilíquidos, atleta esse que, apesar de ser uma promessa, apenas na época desportiva em curso passou a integrar o plantel da equipa principal, não pode deixar de ser considerado como manifestamente excessivo, carecendo de ser reduzido de acordo com a equidade (…) Concluindo o perito que o valor situado na banda 15-18 milhões de euros é um valor consistente com os fixados para os mais proeminentes jogadores da geração do atleta em causa, tendo em consideração a sua trajetória, posição em que atua, registo de lesões, visibilidade internacional e a notoriedade do clube de origem no atual contexto do futebol europeu, pode-se concluir que era este o valor que o clube/entidade patronal poderia ter como expectativa de receber à data da cessação do contrato de trabalho, operada pelo atleta, tanto mais que à luz do ordenamento jurídico português na fixação”, argumentou o TAD na justificação do valor apurado.
Do lado de cada uma das partes, já eram conhecidas as razões que levavam aos respetivos pedidos. No entanto, e no Acórdão do TAD, há dois pontos ainda assim desconhecidos ou que se podem cruzar com outras temáticas da realidade verde e branca: a marcação do treino de 15 de maio de 2018, altura da invasão à Academia em Alcochete, e também os dias em que o jovem avançado esteve muito perto de regressar a Alvalade – um volte face que ficou por minutos e podia mesmo ter acontecido se o pai não travasse a assinatura de um novo contrato.
“Ainda durante essa mesma viagem [Funchal-Lisboa],o treinador Jorge Jesus informou Vasco Fernandes que terça-feira, dia 15 de maio, seria dia de folga e que o primeiro treino após o jogo com o Marítimo ocorreria na quarta-feira, dia 16 de maio, da parte da manhã, tendo logo de seguida pedido a Vasco Fernandes para não dar qualquer informação aos jogadores pois iria pensar qual seria o dia e hora do treino. Acontece que, na tarde do dia 14 de maio de 2018, o então Presidente da Ré reuniu, separadamente, com jogadores, equipa técnica e respetivo staff, no estádio José de Alvalade. Nessas reuniões, o então Presidente da Ré procurou preparar a equipa para um cenário de despedimento do então treinador, Jorge Jesus. Após as referidas reuniões, Jorge Jesus solicitou a Vasco Fernandes para informar os atletas para estarem na Academia de Alcochete às 16 horas do dia 15 de maio. Pelas 20h do dia 14 de maio, Vasco Fernandes comunicou aos jogadores, ao staff de apoio (refeitório e tratamento de relva) e à ADoP (Autoridade Antidopagem de Portugal) para estarem na Academia de Alcochete às 16 horas. A mensagem SMS enviada a todos os jogadores tinha o seguinte teor: ‘Treino amanhã, para estar na Academia às quatro'”, é explicado pela defesa de Rafael Leão a propósito desse episódio.
Ou seja, e em resumo, fica de novo comprovado algo que levou o Ministério Público a deixar cair a acusação de autoria moral do ataque a Bruno de Carvalho, na altura presidente do Sporting: as reuniões em Alvalade tinham como objetivo preparar a saída de Jorge Jesus, a passagem do treino para a tarde de dia 15 foi com objetivo de preparar essa mesma rescisão e foi o treinador que informou o secretário técnico da mudança. No entanto, existe uma história menos conhecida sobre a possibilidade de regresso do jogador ao conjunto verde e branco e que é relatada ao longo do Acórdão do TAD com todos os detalhes em cada um dos dias.
No dia 14 de junho, Rafael Leão reuniu em Vila Nova de Gaia com o pai, com o empresário, Nelson Almeida, e com o advogado, Mário Fontemanha. Foi aí que a carta de rescisão foi preparada, foi aí que se foram juntando todas as hipóteses futuras para o jogador, casos de Real Madrid, Barcelona, Roma, Inter de Milão, Borussia Dortmund, Mónaco, Manchester City, Lille, Wolfsburgo e Sampdória. No início de agosto, o avançado assinou pelo Lille, com um prémio de assinatura de 1,5 milhões de euros e o pagamento de comissão ao agente de 750 mil euros, dos quais parte reverteu para o pai. Tudo tratado mas com um volte face a ficar perto de acontecer.
Como o registo do contrato em França estava a demorar e Rafael Leão queria sobretudo jogar, o avançado ligou a Tiago Fernandes, antigo treinador dos juniores que entretanto subira para adjunto de José Peseiro na equipa A e abriu a porta a um regresso. Tiago Fernandes e o advogado dos leões, João Araújo, foram a França, estiveram com o jogador e com um amigo de família tratado por “tio”, Elírio Manuel, e ficou acordado que na paragem das provas nacionais para compromissos das seleções iria a Lisboa reunir-se com Sousa Cintra, então líder da SAD quando havia uma Comissão de Gestão no clube verde e branco. A 3 de setembro, nos escritórios do empresário, houve a tal reunião, com Leão, Elírio Manuel e Mário Fontemanha. Rafael Leão enviou então uma carta de rescisão para o Lille, que entrou em contacto com o agente Nelson Almeida e que entrou em contacto com o pai.
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António Leão, o pai, não sabia de nada. Ligou ao filho, o filho não atendeu. Ligou a Elírio Manuel e foi este que confirmou a reunião em Belém. Sabendo a morada, António Leão tentou aceder aos escritórios, o que foi negado, aproveitando depois a entrega de um estafeta de pizzas para entrar, encontrando o filho com um novo contrato de trabalho desportivo à frente para assinar. Ia assinar, só não o fez porque o pai conseguiu entrar na sala e impediu. No dia seguinte, no Hotel Marriott, foi redigida a revogação da rescisão com o Lille num encontro com o empresário, Nelson Almeida, e o pai, que ainda não tinham recebido qualquer comissão dos gauleses. Foi enviada. No dia 7, a Federação Francesa de Futebol homologou o vínculo e Rafael Leão tornou-se jogador do Lille. Menos de um ano depois, o avançado foi transferido para o AC Milan, por um valor a rondar os 30 milhões de euros (um valor referido pela imprensa, nunca confirmado pelas partes) com um vínculo de cinco épocas.