Em Itália, e um pouco por todo o mundo, o pedido é quase transversal: mais máscaras, mais luvas, sobretudo com uma maior urgência mais ventiladores. Em Bérgamo, além de todas as requisições, faltam caixões. As empresas funerárias ainda tentam fazer um esforço extra para irem até Veneza levantar mais alguns mas quando chegam à cidade e chocam com a realidade percebem que não chega. Nunca chega. Mesmo com funcionários que trabalham 12 a 14 horas sem pausas, nunca chega. “Não é fácil encontrar caixões, faltam caixões. Nos últimos dias encomendámos mas a empresa não conseguiu entregar, fomos lá nós. Estamos em colapso”, disse o funcionário de uma das funerárias locais ao Eco di Bergamo. O Eco di Bergamo, jornal que vivia dias de felicidade por escrever Liga dos Campeões nas suas manchetes tendo a Atalanta na imagem principal, tinha em média duas páginas com obituários na sua edição. Hoje, tem mais de dez. Esta é a realidade da região mais afetada no país.

Dois funerais por hora, camiões militares a transportar caixões e dez páginas de obituários. A situação dramática em Bérgamo

Numa entrevista via Facebook, Giorgio Gori, apesar de tudo mais calmo do que outros presidentes de cidades ou regiões que começam a gravar vídeos em fúria com as decisões do governo (exemplo: Antonio Tutolo, líder de Lucera, na província de Foggia, que mostrou toda a revolta pela possibilidade de cabeleireiras ainda poderem ir a casa das pessoas nesta fase) mas abatido com uma realidade que nem a ligeira desaceleração no número de novos casos consegue alterar, acrescentou mais alguns dados. Por exemplo, que 134 dos 600 médicos de família da cidade de Bérgamo ou estão infetados com o vírus ou encontram-se de quarentena.

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Como refere o The Guardian, o novo coronavírus já matou pelo menos 24 médicos em todo o país, incluindo Rosario Lupo, médico legista de Bérgamo. Hoje as condições, mesmo que parcas em termos materiais e algumas vezes sobrehumanas no plano físico, são diferentes. Como em tudo, o problema esteve nos primeiros dias, quando muitos dos médicos e enfermeiros não tinham a proteção suficiente enquanto cuidavam dos doentes. Aí, nos hospitais que se tornaram num verdadeiro campo de guerra, e noutros campos. Neste caso, de futebol.

Jogo Atalanta-Valência é responsável pela situação em Bérgamo, diz médico espanhol

A 19 de fevereiro, a Atalanta recebia o Valencia na primeira mão dos oitavos da Liga dos Campeões. O jogo teve de realizar-se no San Siro, em Milão, porque o agora Gewiss Stadium, antigamente conhecido como Atleti Azzurri d’Italia, não reunia todas as condições para receber um jogo europeu. Noite de gala em campo, com uma goleada por 4-1 frente aos espanhóis que prolongou o sonho da equipa estreante na principal prova europeia de futebol, noite de gala fora dele, com muita festa para comemorar mais um marco histórico. Ou, aquilo que se percebe cinco semanas depois, um foco inicial do drama que ainda hoje está a arrasar todos os transalpinos.

“Viajaram 40 mil pessoas de Bérgamo para Milão nesse dia, para ver o jogo da sua equipa. O estádio estava cheio e depois a festa continuou nos bares. Se o vírus já circulava, essas pessoas ficaram infetadas. Foi uma bomba biológica. Ninguém sabia que o vírus estava entre nós. Muitos vieram ao jogo em grupos organizados e ficaram infetados nessa noite, depois o vírus foi passando de uns para os outros”, disse Giorgio Gori, citado pela Marca, numa opinião que já tinha sido partilhada por médicos.

O presidente de Bérgamo não tem dúvida que essa noite foi “um forte momento de propagação do contágio entre as pessoas” e os números mostram isso mesmo. Na altura, a associação feita aos poucos casos conhecidos tinha a ligação à China, porque todos tinham passado pelo país. Estavam internados numa unidade hospitalar em Roma, especializada em doenças infecciosas. No entanto, o número de infetados era aí maior do que se pensava – ou não fosse este um adversário temível mas invisível. Se a 24 de fevereiro, cinco dias depois do jogo, não havia casos na região de Bérgamo. 24 horas depois, eram 18. Depois 20. Uma semana depois, a 1 de março, o número já tinha subido para 208. Impensáveis 208, pensava-se na altura. A 8 de março, a região passava a fasquia dos 1.000. Hoje, só a província de Bérgamo tem um total de 6.728 casos. Na Lombardia, registam-se quase 4.200 mortes.

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De Espanha vieram também os números que ajudam a consolidar essa ideia: vários adeptos do Valencia foram a esse jogo e, dias depois, apresentaram sintomas que confirmaram casos positivos de coronavírus, incluindo um jornalista que tinha viajado em trabalho a Milão. Mais tarde, também a equipa do Valencia acabou por ser a mais afetada com o surto, com 35% do plantel entre jogadores (como Garay ou Mangala, que passaram por Portugal), equipa técnica e restante staff infetado. Entre a formação da Atalanta, numa Serie A com dezenas de elementos infetados, o primeiro caso positivo surgiu no início desta semana, com o guarda-redes Marco Sportiello.

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No entanto, e da mesma forma como esse jogo foi um fator propagador, Giorgio Gori também destaca que o início de tudo foi outro. “Apesar disso, não se pode justificar tudo com o jogo. A verdadeira faísca foi aquela que houve no hospital Alzano Lombardo, com um paciente que tinha uma infeção pulmonar não reconhecida e que contagiou outros pacientes, médicos e enfermeiros. Esse foi o foco onde começou o resto”, salientou, falando do caso de um homem com menos de 40 anos de Codogno, com uma vida saudável e que praticava exercício, que não tinha qualquer ligação à China e que terá apanhado de um paciente zero que demorou a ser encontrado numa altura em que a propagação, ainda que invisível, já tinha começado.  “A pessoa a quem chamamos paciente 1 provavelmente era o paciente 200”, comentou o infectologista Fabrizio Pregliasco, citado pelo El País.

40 mil euros doados ao hospital, um adepto especial e o póquer histórico de Ilicic: a vitória da Atalanta em Valência à porta fechada