Houve apelos emocionais, discussões, fúria, mas, no fim, prevaleceu a vontade de Alemanha e da Holanda: não há “coronabonds” para ninguém. Pelo menos para já. A forma como António Costa – logo ele, o otimista irritante – saiu irritado da reunião do Conselho Europeu dava para perceber que o encontro não correu bem àqueles que queriam mais. O primeiro-ministro português e mais oito líderes – onde estavam pesos pesados como o francês Emmanuel Macron, o espanhol Pedro Sánchez ou o italiano Giuseppe Conte – já tinham defendido numa carta a emissão de dívida comum a nível europeu como resposta ao surto de Covid-19. A discussão da proposta a 27 não correu bem.

A medida enfrentou a oposição da Alemanha e da Holanda, que por norma são os países mais conservadores em matéria de apoios financeiros. A chanceler alemã Angela Merkel – que no Conselho Europeu de 17 de março até tinha sinalizado abertura para discutir este tipo de títulos de dívida conjunta – deixou claro no fim da reunião que a resposta europeia não deveria passar pelos “coronabonds”, mas pelo recurso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade, criado em 2012. “É o instrumento preferencial”, disse Merkel na quinta-feira à noite.

Mas “preferencial” não significa a única solução. Estará a Alemanha disposta a ceder e esta posição pública ser só para não enfrentar oposição interna? Berlim será a chave: só a mudança de posição de Merkel poderia impulsionar os eurobonds. António Costa referiu-se na quinta-feira ao “país que sempre foi contra e que agora mostra abertura”, sem concretizar. Não nomeou, mas estava a referir-se à Alemanha, o que mostra que, na perspetiva portuguesa, Berlim ainda pode ceder nesta matéria e aceitar a mutualização da dívida.

Para já, não há fumo branco e houve muita confusão. Para o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, como descreve a edição europeia do Politico, o verdadeiro teste da solidariedade europeia na resposta a esta crise resumia-se a uma palavra: bond. Não interessava se era “eurobond” ou “coronabond” (na prática, a mesma coisa), mas isto seria a prova se a união é mesmo unida. Mas a UE chumbou no teste.

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A braços com uma tragédia e com o tom irritado, Giuseppe Conte ficou furioso e disse mesmo que não apoiaria a posição conjunta. E mostrou-se irredutível. Foi um esforço de última hora do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que resolveu a situação. Caso contrário, um desacordo numa altura destas seria um desastre político para a União Europeia.

Conte faz ultimato de 10 dias para haver proposta adequada

Conte acabou por aceitar a posição conjunta, mas deixou um aviso que são necessários “novos instrumentos” e fez mesmo um ultimato à cúpula de Bruxelas para que, em 10 dias, seja apresentada uma “solução adequada à situação”.  Uma das formas de Michel para acalmar Conte e Sánchez foi marcar outro Conselho Europeu para daqui a duas semanas.

Mas o italiano quis mais. Na posição conjunta do Conselho Europeu foi estabelecido: “Tomamos nota dos progressos realizados pelo Eurogrupo. Nesta fase, convidamos o Eurogrupo a apresentar-nos propostas dentro de duas semanas. Essas propostas devem levar em conta a natureza sem precedentes do choque Covid-19 que afeta todos os nossos países e nossa resposta será intensificada, conforme necessário, com ações adicionais de maneira inclusiva, à luz dos desenvolvimentos, a fim de fornecer uma resposta abrangente.” O Eurogrupo recusou eurobonds, com uma forte oposição do ministro das finanças holandês (que Costa atacou violentamente) e por isso o facto de estar escrito no documento “propostas”, no plural, significa – na leitura italiana – que os eurobonds ainda estão em cima da mesa.

“Coronabonds”: as vantagens, os obstáculos e as alternativas

Espanha é um país que caminha para ser uma nova Itália a nível de sofrimento e Sánchez esteve sempre ao lado de Conte. “Se não propusermos agora uma resposta unificada, poderosa e eficaz a esta crise económica, não apenas o impacto será mais forte, mas seus efeitos durarão mais e estaremos a colocar em risco todo o projeto europeu”, disse o primeiro-ministro espanhol.  Sánchez lembra que, com esta postura, a UE prepara-se para cometer “os erros da crise financeira de 2008, que plantou as sementes do descontentamento e da divisão com o projeto europeu e provocou a ascensão do populismo”.

O presidente do governo espanhol alertou: “É preciso aprender a lição [de 2008]”. Um alto funcionário da UE ouvido pelo Politico classificou as intervenções de Sánchez e de Conte como “emocionais”. Como conta o El País, quando Michel perguntou ao espanhol se aceitava a primeira proposta de posição conjunta, Sánchez respondeu: “Não”. E ele alertou que não assinaria “qualquer acordo que não estabeleça um mandato claro para que os ministros da Economia [e Finanças] possam continuar o trabalho”.

Como resultado das intervenções de Conte e Sánchez, a videoconferência arrastou-se três horas a mais do que o esperado, enquanto Michel trabalhava freneticamente para preservar a declaração conjunta. Por fim, o belga conseguiu uma série de ajustes que apenas funcionários altamente sintonizados com a burocracia de Bruxelas poderiam entender.

Outro dos trunfos de Michel para convencer Espanha e Itália não baterem com a porta é um parágrafo do documento que diz: “Devemos começar a preparar as medidas necessárias para voltar ao funcionamento normal de nossas sociedades e economias e ao crescimento sustentável (…) Isso exigirá uma estratégia de saída coordenada, um plano de recuperação abrangente e investimentos sem precedentes. Convidamos o Presidente da Comissão e o Presidente do Conselho Europeu, em consulta com outras instituições, especialmente o BCE [Banco Central Europeu], a iniciar os trabalhos de um roteiro acompanhado por um plano de ação para esse fim.”

Os problemas criados pelos eurobonds e a tensão do Conselho Europeu acabaram por ofuscar outras medidas tomadas como a compra de equipamentos a nível europeu, uma proibição de 30 dias para viagens não essenciais para o espaço europeu e uma melhor coordenação nas restrições das fronteiras internas.

A carta que os nove líderes enviaram, a posição do antigo presidente do BCE, Mario Draghi, e a posição presidente do Parlamento Europeu, o também italiano David Sassoli, criaram um clima de pressão que antecedeu o Conselho Europeu. Mas, no fim, a posição alemã foi a que contou. E as coisas podiam ter descambado.

Sassoli junta-se a Macron e Costa na defesa dos ‘coronabonds’ como resposta à crise

A França (Macron apoia os eurobonds e assinou a carta) terá dramatizado menos que a Itália e Esapnaha, mas uma fonte diplomática francesa ouvida pelo Politico reitera que é necessário “haver um encontro novamente”  para debater novos instrumentos financeiros de resposta a crise, num debate que já todos sabem que “será difícil”. Apesar disso, França ainda tem esperança: “Existem visões diferentes sobre o que deve ser a solidariedade financeira, mas – pelo menos – todos concordam com a necessidade de avaliar o assunto e assumem a urgência do mesmo“.

O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, também se mostrou inflexível na ideia de recusar os coronabonds e a ele juntaram-se o chanceler austríaco Sebastian Kurz e a primeira ministra finlandesa Sanna Marin.

A revolta de Costa contra os holandeses

Apesar de ser líder de um país médio, Costa já ganhou algum estatuto no Conselho Europeu, e as boas relações com Macron e, principalmente, Sánchez dão-lhe um posicionamento privilegiado. É um líder nos socialistas e é bem aceite pelos liberais (muitos deles que vieram da família socialista).

No fim da reunião, por videoconferência, António Costa mandava a primeira indireta que não falava a mesma língua que Haia. “Mark Rutte é muito simpático, mas não fala português nem eu falo holandês”.

Mas seria muito mais duro quando foi questionado pelos jornalistas sobre as declarações do ministro das finanças holandês no início da semana no Ecofin, Wopke Hoekstra, que terá sugerido uma investigação a Espanha depois de Madrid ter afirmado que não tinha margem orçamental para responder à crise provocada pelo novo coronavírus sem o apoio financeiro da União Europeia.

“Coronabonds” são nota de rodapé no Eurogrupo — que admite Mecanismo de Estabilidade para atacar crise

Esse discurso é repugnante”. E reforçou com ênfase, soletrando: “A expressão é mesmo esta: re-pug-nan-te”. No final da reunião de quinta-feira do Conselho Europeu, por videoconferência, António Costa assumiu-se como porta-voz do descontentamento sobre a desunião na União Europeia. Mas já depois de fazer a mira a três países que não nomeou, e atacar ferozmente a posição assumida pelo Governo dos Países Baixos.

António Costa avisou: “Não estamos e ninguém está disponível para voltar a ouvir ministros das Finanças holandeses como aqueles que já ouvimos em 2008, 2009 e 2010. É uma boa altura de compreenderem todos que não foi a Espanha que criou o vírus nem que importou o vírus, atingiu-nos a todos por igual. Se não nos respeitamos e se não compreendemos que perante um desafio comum temos de ter capacidade de responder em comum, então ninguém percebeu nada do que é a União Europeia.

Da “mesquinhez” ao “discurso repugnante”: Costa ataca ministro dos Países Baixos

Há aqui uma nuance. Se Mark Rutte, o primeiro-ministro holandês, é da família política dos liberais (do Renew, grupo chamado de “Macron’s baby” no Parlamento Europeu), o mesmo não acontece com Wopke Hoekstra, que é da família do Partido Popular Europeu (família da CDU de Angela Merkel e também do PSD e do CDS).

Jerome Dijsselbloem, que também era holandês e esteve contra Portugal algumas vezes numa altura difícil para o país, era da família de Costa (socialistas europeus), mas também não foi poupado. A Holanda tem sido o braço direito da Alemanha com uma postura mais exigente e conservadora, sendo muitas vezes mais dura que a própria Alemanha.

A irritação de Costa já teve eco em jornais internacionais como o Financial Times.