As ruas de Lisboa estão presas a um eterno domingo. Desertas de carros, povoadas a espaços com motos de entregas de comida. Mas permanecem aqueles que não têm teto, esperando pela refeição quente entregue quando a solidariedade se faz à estrada.

O relógio marca 19:45 e a equipa de seis voluntários do CASA — Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, sai da sede em Sete Rios para a ‘volta’ rumo ao centro da cidade.

A pensar nas dificuldades das associações devido à pandemia de covid-19, o município definiu um plano para articulá-las. O CASA e a Noor Fátima ficaram responsáveis por confecionar as refeições e entregá-las à Comunidade Vida e Paz para a distribuição, mas segundo o diretor de serviços do CASA, o modelo “não estava a funcionar em alguns aspetos”.

A instituição optou, dando conta à autarquia, por voltar esta semana ao trabalho que fazia anteriormente: confeção e distribuição de refeições quentes na rua. Alguns antigos voluntários voltaram ao CASA e outros disponibilizaram-se entretanto, encontrando-se “um formato que é possível trabalhar todos os dias”, referiu Nuno Jardim à Lusa.

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Antes da pandemia, a associação confecionava cerca de 400 refeições por dia. Hoje saem 270 refeições, 150 para o Pavilhão do Casal Vistoso e as restantes para a rua. Atualmente são 20 os voluntários que por semana asseguram todo o trabalho de recolha, armazém e distribuição das refeições, número que o responsável afiança ser o adequado à rota de distribuição.

“Temos visto que têm aparecido menos pessoas em alguns locais onde havia mais. Na minha leitura tem também a ver com a abertura de pavilhões e o facto de as pessoas terem oportunidade para irem para essas respostas”, frisa.

A equipa sai perto da hora de jantar, mas o trabalho começou horas antes, às 14:00, na cozinha, pela mão do ‘chef’ Henrique, que faz 43 anos e é funcionário da associação, na qual começou há oito anos como voluntário.

“Uma coisa que aprendi com os ‘chefs’ quando fiz o curso é que na cozinha não há um padrão, temos de ser criativos e puxar pela imaginação e dar sempre boas refeições. Fazer com aquilo que temos disponível, para dar uma comida que nós próprios comeríamos em casa”, explica, salientando que a única diferença é “talvez a quantidade”, mas ao fim e ao cabo “vai dar tudo ao mesmo”. Nesta missão, diz, não há segredos, apenas “ter força de vontade”.

Vanessa Barreira, de 36 anos, veio de Oeiras. Partilha a casa com a mãe, mas nem por isso baixou os braços quando soube que muitos voluntários não podiam estar nas voltas. Conhece o trabalho do CASA desde o início – foi voluntária durante anos.

“Acho que é importante não ficarmos parados e ajudar. Claro que com as devidas precauções. Tomo as minhas medidas quando chego a casa, a minha mãe é uma pessoa de risco, mas sinto que tenho de ajudar. Não é uma obrigação, venho porque quero, estava afastada do CASA há muitos anos, mas posso. Podendo, quero ajudar e sinto-me melhor a fazê-lo do que a estar só em casa”, diz.

A par da mediação de seguros, Vanessa é terapeuta massagista e explica que agora, como deixou de poder exercer esta atividade, ficou com mais tempo livre. “Em todos os momentos da nossa vida devemos pensar no outro, colocarmo-nos no lugar do outro, sempre, num conceito de união, de amor, por nós, pelo outro, em qualquer situação é o mais importante”, afirma.

Foi também o amor pelo outro que Maria José, voluntária de 73 anos, reconheceu como das primeiras coisas que se desenvolve no CASA: “Sou muito recente aqui, mas o primeiro passo será distribuirmos amor e o toque, e depois vamos distribuir alimentos”. Zé, como é conhecida entre os voluntários da equipa de domingo, não compreende ainda muito bem “a ‘décalage’ existente entre os que têm muito e aqueles que não têm nada”. Considera existir ainda “muito egoísmo e narcisismo” no mundo, quando “tudo pode mudar se todos derem um pouco de si”.

“Levo mais eu do que dou”, confessa, por seu turno, João Peneda, de 52 anos, admitindo já não ser novo no voluntariado. Andou em Timor em ajuda humanitária, ajudou nas Nações Unidas e nos Médicos do Mundo, e esteve 14 anos envolvido no envio de medicamentos para Angola. “Sempre gostei de participar”, diz o também voluntário do Banco Alimentar.

Minutos antes da partida chega à sede do CASA uma carrinha repleta de donativos de um particular: arroz, massas, enlatados. Os voluntários ajudam a descarregar e a arrumá-los na despensa, agora meio vazia, sem se saber quando voltará a encher.

Voltando ao relógio: são 19:45 de sexta-feira e não há trânsito nas ruas. Depois de uma viatura da Crescer ter já rumado à Estação do Oriente (ronda assegurada neste período por esta associação, em parceria com o CASA), duas carrinhas saem, com os voluntários sempre protegidos contra o “inimigo invisível que não se sabe onde anda”, com luvas, máscaras e gel desinfetante.

Os semáforos continuam a funcionar, alheios à meia dúzia de carros que passam. A primeira paragem faz-se perto do Jardim Constantino, onde Ana Cardoso, pensionista por invalidez, vai buscar um saco com a refeição. “Não consigo dar resposta com o dinheiro que tenho, não vivo na rua, mas esta é uma ajudinha”, conta, explicando que o casal que se encontra a 50 metros está em pior situação: “Vivem ali, são meus vizinhos. Os azares da vida atiraram-nos para a rua e ali estão”.

No Núcleo de Apoio Local de Arroios encontra-se uma fila ordeira à espera. A distribuição, que antes era feita sentada à mesa, é agora feita cá fora, sob o olhar de dois polícias. É aqui que são distribuídas mais refeições, aos do costume e a outros que se lhes juntaram.

“Fiquei sem emprego. Trabalhava na hotelaria e o patrão fechou. fui despedido”, conta Fernando Barreto, de olhos marejados. Custa-lhe muito estar ali, mas viu-se sem opção “porque o dinheiro já não chega para comer”.

“Sempre tive uma vida cinco estrelas e agora aparece isto”, acrescenta, com esperança, ainda assim, de que “tudo irá passar, só não se sabe quando”.

No Marquês de Pombal, enquanto os autocarros da Carris terminam o serviço, são distribuídas mais algumas refeições a pessoas só vistas pelos olhos treinados de quem conhece os cantos à cidade. Mais acima, na rua Alexandre Herculano, um novo grupo. Cerca de 20 pessoas, entre elas Fernando, 28 anos, os últimos oito passados na rua, depois da morte da mãe, com quem vivia.

“Fiquei sem dinheiro e tive de vir para a rua. Não tenho vícios de droga ou álcool, só tabaco”, diz, escusando-se a mais pormenores. Conta somente que ocupa os dias a arrumar carros, “mas agora nem isso”.

A ‘volta’ desce depois para a Praça da Alegria, onde dias antes se entregavam 10 refeições, mas nesta sexta-feira não há ninguém. Segue-se para o Príncipe Real, que numa sexta-feira normal estaria à pinha. Agora há três pessoas à porta de um restaurante, todos estafetas.

Nem a altas horas da madrugada as ruas do Chiado e do Largo Camões estiveram tão cheias de ninguém, tal como o Cais do Sodré ou a Praça D. Luis I, junto ao Mercado da Ribeira, onde até o parque de estacionamento está livre às 21:50.

“As ruas transformaram-se num eterno domingo”, ouve-se entre o grupo de voluntários, que serve agora, debaixo das arcadas, uma dezena de pessoas que ali encontrou teto e agradece a refeição quente.

Mário, 39 anos, natural da Figueira da Foz, vive há quatro anos em Lisboa, na rua. Uns metros à frente está um irmão numa tenda. Os dois unidos na mesma sorte que “as más escolhas” trouxeram. “De dia vou para Belém estacionar carros, mas já não dá para nada”, conta, lamentando as trocas que a vida deu, depois de anos a fazer-se ao mar para ter sustento.

Passando por um Terreiro do Paço deserto, ouvem-se as ondas da maré no Cais das Colunas, sem o som dos turistas e casais de namorados. Mais duas paragens, Praça da Figueira e Rossio, antes de rumar ao CASA subindo a Avenida da Liberdade.

“Obrigada por virem. Amanhã continuamos cá”, despede-se da equipa um sem-abrigo, ouvindo como resposta: “Nós também”.