Em estado de emergência, vários países europeus estão a abandonar alguns direitos de privacidade dos cidadãos com um propósito: saber quem pode estar infetado com o novo coronavírus e por onde é que este está a propagar-se. Em Espanha, o governo aprovou a vigilância dos movimentos dos cidadãos através de dados das operadoras de telecomunicações. A Suíça já admitiu ter vigiado o nível de cumprimento da contenção social com a mesma ferramenta. A Irlanda para lá caminha. No Reino Unido, o projeto já arrancou e na Polónia até há uma app que simula o funcionamento de uma pulseira eletrónica. Contudo, há alertas de quem sempre defende a privacidade dos cidadãos nas democracias, como Edward Snowden.
Estas medidas para perceber a propagação do novo coronavírus foram usadas inicialmente em países como a China ou a Coreia do Sul. No primeiro país, onde foi detetado pela primeira vez a Covid-19, foi lançada uma app que atribui uma cor aos cidadãos para poderem dizer às autoridades se estão ou não infetados. Contudo, rapidamente soube-se que esta aplicação partilhava dados com a polícia. Na Coreia do Sul, como conta a Wired, os dados de localização dos smartphones foram também utilizados para perceber quem está ou não infetado. Neste caso, os habitantes chegam a receber um SMS a dizer se estiveram em contacto com alguém infetado e revelam a idade e género da pessoa, o que põe em causa a privacidade.
Em Israel, por exemplo, o governo já deu autorização para que os serviços secretos possam aceder aos smartphones dos cidadãos sem um mandato. Na Polónia, quem está de quarentena tem de fazer download de uma app que, periodicamente, pede uma selfie ao utilizador para comprovar que está em casa. Se não responder em 20 minutos, a polícias é avisada, como conta o Business Insider.
Como conta o The Local, o governo suíço já monitoriza os dados móveis dos cidadãos. Na quarta-feira, o ministro do interior, Alain Berset, disse que a população suíça “não deve ter medo da vigilância”, referindo que enquanto durar a quarentena e as medidas de distanciamento social, o executivo vai continuar a recolher dados, numa altura em que o país tem 15,069 infetados confirmados.
Estas medidas podem ser encaradas como ameaças à proteção de dados pessoais, mas através dos dados que os smartphones conseguem recolher, como a localização exata do utilizador, quem tem acesso a esta informação consegue desenhar padrões e perceber onde é que as pessoas infetadas estiveram e quem poderão ter contagiado.
Numa altura em que pensamos quando é que se pode voltar a sair à rua, estas medidas podem ajudar a impedir novos surtos da pandemia permitindo aplicar mais rapidamente novas quarentenas a espaços mais confinados. Além disso, os governos conseguem controlar de forma mais eficiente quem está de quarentena sem grande medidas adicionais.
Apps e dados com um objetivo: saber onde anda a Covid-19. Mas são apagados depois?
Como conta o jornal ABC, em Espanha, um país que contava até ao início desta segunda-feira 7.340 mortos devido ao novo coronavírus, o Instituto Nacional de Estatística (equivalente ao INE português) apenas monitorizará os dados de espanhóis “nos dias anteriores e durante o confinamento”. No final, o objetivo é criar “estudo da mobilidade” do cidadão espanhol nesta crise de saúde. Esta medida permite o cruzamento de dados das várias operadoras telefónicas. Contudo, a recolha destes dados é feita de forma agregada e anónima, respeitando as leis espanhola e europeia sobre a proteção de dados.
Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde espanhol obrigou o secretário de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial a desenvolver uma app que ajude o “utilizador a realizar uma autoavaliação, com base nos sintomas médicos, que reporte sobre a probabilidade de estar infetado com a Covid-19”. Esta aplicação servirá também para o utilizador comprovar se está onde diz estar, o que levanta questões de privacidade.
Noutros países europeus, que seguem a mesma matriz de proteção de dados pessoais dos cidadãos (como a localização), as questões que surgem são as mesmas que foram colocadas no Reino Unido. Neste país, o departamento da saúde anunciou que estava a recolher dados através de chamadas de emergência e resultados de análises da Covid-19 em parceria com empresas tecnológicas. Como noticia a BBC, o governo britânico está a trabalhar juntamente com a Microsoft, a Google, a Palantir, a Amazon e a Faculty AI (esta última, a única britânica) para esta recolha. Rapidamente surgiram dúvidas: como estão a ser usados os dados e como é garantido o anonimato?
A principal crítica foi para o envolvimento da empresa norte-americana Palantir neste processo. Nos EUA, esta foi a mesma organização que ajudou o executivo a saber onde estavam imigrantes ilegais através de dados de geolocalização. Isto sem ordens judiciais ou o conhecimento do vigiado. Depois de surgirem estas críticas, o responsáveis deixaram duas promessas: a auditoria das formas de recolha destes dados é a mais transparente e aberta “sempre que possível” e, no final desta situação, os dados vão ser todos destruídos.
Como noticia o Irish Times, nos próximos 10 dias vai ser lançada uma app na Irlanda que permite às autoridades fazer um mapa da propagação do novo coronavírus. De acordo com as autoridades irlandesas, este esforço na luta contra a pandemia está a ser feito com a tutela do departamento nacional de proteção de dados e cumprindo o estipulado no RGPD, o regulamento europeu que legisla esta matéria.
Contudo, Simon McGarr, especialista irlandês em proteção de dados, aponta alguns receios. Como é que o estado vai guardar esta informação? Exatamente que informação vai ser guardada? Quem tem acesso a ela? O anonimato dos dados vai ser garantido?
O aviso de Snowden: e depois de o novo coronavírus desaparecer?
No início da semana passada, Edward Snowden deixou avisos sobre as medidas que estão a ser implementadas. Numa entrevista, o analista de norte-americano que está exilado na Rússia depois de ter revelado que os EUA tinham um programa massivo de espionagem, alertou que, teoricamente, estes novos poderes introduzidos pelos estados para combater o surto do novo coronavírus podem permanecer em vigor depois que a crise diminuir. “Cinco anos depois de o novo coronavírus ter desaparecido, esses dados ainda estão disponíveis e eles [o Estado] vão começar a procurar coisas novas”, avisou.
Já sabem o que vê na internet, já sabem para onde o telefone está a mover-se, agora sabem qual é a sua frequência cardíaca. O que é que acontece quando começam a misturá-los e aplicar inteligência artificial?”, diz Snowden.
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Em Portugal, ainda não foram acionadas medidas semelhantes para detetar a forma como a Covid-19 está a propagar-se. Contudo, associações de direitos digitais portuguesas, como a D3, também já deixam alertas em comunicado. No país, para já, no que concerne a telecomunicações, foram apenas acionadas medidas para garantia o funcionamento da infraestrutura. Mas desde 20 de março que a PSP admite recorrer a medidas que restringem a privacidade como o uso de drones, altifalantes, sistemas de videovigilância e a um aumento das operações STOP para fazer cumprir as medidas do estado de emergência.
Estes drones, que permitem a captação de imagem, poderão vir a ser usados pela polícia para monitorizar a circulação nas ruas do país. A GNR já está a utilizar esta tecnológica em Ovar, após um parecer positivo da Comissão Nacional de Proteção de Dados devido ao estado de emergência, como noticiou o Público.