Ricardo Salgado voltou a não ter sucesso na interposição de um incidente de recusa de Carlos Costa por alegada falta de imparcialidade do governador do Banco de Portugal (BdP). Apesar de três tentativas, e dos diferentes argumentos apresentados pela defesa do ex-presidente executivo do Banco Espírito Santo (BES) para assim tentar anular várias das acusações e condenações contra-ordenacionais do supervisor da banca, o Tribunal da Concorrência Regulação e Supervisão ou a Relação de Lisboa continua a não dar razão à defesa a cargo dos advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Schillaci.
A última tentativa verificou-se através de um incidente de recusa apresentado no âmbito do chamado processo Eurofin. Estão em causa declarações feitas por Carlos Costa a 4 de março no âmbito de uma audição parlamentar sobre o caso Luanda Leaks, na qual vários deputados fizeram perguntas sobre o ponto da situação do caso BES. O líder do BdP explicou que, dos quatro processos abertos à administração liderada por Ricardo Salgado, apenas faltava concluir o caso Eurofin — no qual Salgado e outros ex-administradores do BdP foram acusados pelo Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória do BdP de violar as normas de concessão de crédito entre 2011 e 2014 em mais de 2.856 operações de crédito ao Grupo Espírito Santo que totalizaram cerca de 1,2 mil milhões de euros.
Carlos Costa garantiu aos deputados que apenas persistia uma “obstrução processual” — noticiada aqui pelo Público — que impedia o Conselho de Administração do BdP de tomar uma decisão final de condenação ou arquivamento naquele processo. Quando tal “obstrução”, relacionada com o segredo profissional de Rui Silveira, advogado e ex-administrador do BES, estivesse resolvida, continuou o governador, esse processo seria resolvido numa semana.
A defesa de Ricardo Salgado interpôs no início de março um incidente de recusa de Carlos Costa no Tribunal da Concorrência Regulação e Supervisão, a instância de recurso das decisões ou processos do BdP, alegando que tais declarações consubstanciavam um pré-juizo condenatório do ex-líder do BES. Não era a primeira vez que, no âmbito dos autos do processo Eurofin, Francisco Proença de Carvalho e Adriano Schilacci tentavam obter uma declaração de impedimento ou recusa quer de Carlos Costa quer do Conselho de Administração do BdP.
Contudo, a juíza Marta Campos discordou da defesa e, numa decisão tomada a 30 de março indeferiu o incidente de recusa por entender que o “sentido das afirmações do senhor governador, à luz da leitura de um cidadão médio considerando as circunstâncias do caso, corresponde à asserção de que a decisão final seria proferida com a máxima celeridade assim que a marcha processual o permitisse“, lê-se na decisão a que o Observador teve acesso.
O conselho de administração do BdP liderado por Carlos Costa poderá agora tomar uma decisão final sobre o caso Eurofin. Nos processos contra-ordenacionais do supervisor da banca, o Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória acusa e o órgão máximo do BdP absolve ou condena os gestores financeiros ao pagamento de multas e eventualmente a penas acessórias de inibição do exercício de funções em órgãos sociais de instituições de crédito ou de sociedades financeiras.
O trunfo do parecer do ex-provedor de Justiça que ainda não foi apreciado
Há ainda um outro incidente de recusa a alegar a falta de imparcialidade de Carlos Costa e do conselho de administração do BdP que continua pendente no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão — o que representa a quarta tentativa nesse sentido do ex-líder do BES.
Neste caso, estão em causa os autos do chamado processo BESA – Banco Espírito Santo Angola. Depois de o BdP ter condenado Ricardo Salgado em janeiro de 2019 a pagar uma multa de 1,8 milhões de euros pela atividade do Banco Espírito Santo de Angola (BESA) e a exposição do BES à operação angolana avaliada em mais de 3 mil milhões de euros, o ex-líder do BES recorreu para aquele tribunal de recurso instalado em Santarém, sendo seguido pelos ex-administradores Amílcar Morais Pires e Rui Silveira, que também foram condenados ao pagamento de coimas, no valor, respetivamente, de 1,2 milhões e 400 mil euros.
Antes das alegações finais do julgamento do recurso interposto, a defesa de Salgado puxou de um ‘trunfo’ na forma de um parecer do penalista Faria Costa. O igualmente ex-provedor de Justiça repete os argumentos da defesa a cargo de Francisco Proença de Carvalho e Adriano Adriano Squilacce a propósito de outras declarações do governador do BdP proferidas na conferência de imprensa de 3 de agosto de 2014 em que a resolução do BES foi publicamente anunciada e em diversas entrevistas publicadas em 2016 e 2017.
Primeira condenação de Ricardo Salgado prestes a transitar em julgado
No incidente que interpôs, a defesa de Salgado cita frases do governador do BdP sobre os “atos de gestão gravemente prejudiciais ao interesse do BES” levados a cabo antes de junho de 2014 e sobre a existência de um “esquema de financiamento fraudulento” entre as empresas do Grupo Espírito Santo. É igualmente citada uma entrevista do governador ao Expresso em fevereiro de 2016 sobre o momento em que deixou de confiar em Ricardo Salgado: “Em finais de maio de 2014, no dia em que recebi as informações que mostraram que havia falsificação de contas”, afirmou então o governador. Tudo isto sustenta a acusação de parcialidade dirigida a Carlos Costa.
Segundo Faria Costa, estas declarações “destroem a aparência de imparcialidade que deve ter o julgador” e fazem com que o BdP, enquanto supervisor responsável pela ação contra-ordenacional, não tenha tido alegadamente a “equidistância exigida entre o julgador e o arguido”. Por isso mesmo, a acusação e a condenação proferidas contra Ricardo Salgado devem ser “anuladas”, por resultar daí um “efetivo prejuízo para a justiça da decisão do processo”, lê-se no parecer citado pela Agência Lusa.
O que já disseram os tribunais sobre a alegada parcialidade
A argumentação que foi repetida por Faria Costa tem sido invocada desde o primeiro recurso interposto pela defesa de Ricardo Salgado contra as condenações do ex-líder do BES no BdP. Mas tem sido sucessivamente derrotada em toda as sedes de recurso quer no Tribunal da Concorrência, quer no Tribunal da Relação de Lisboa.
Por exemplo, a defesa de Salgado já tinha tentado no âmbito do caso Eurofin que Carlos Costa e o conselho de administração do BdP fossem declarados impedidos pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão de tomar as decisões sobre o ex-presidente do BES por alegadamente não terem sido imparciais. Mas, uma vez mais, os argumentos foram rejeitados.
Numa decisão datada de 6 de dezembro de 2018, o juiz Alexandre Leite Baptista considerou que não existia qualquer motivo para uma suspeita sobre a imparcialidade nem do governador nem do órgão colegial que gere o supervisor. Porquê? Porque, por um lado, qualquer alegada parcialidade de Carlos Costa não se comunicaria aos demais membros do conselho de administração do BdP. É uma “inatendível ficção” que a defesa de Ricardo Salgado produz “entre imputação de atos pessoais a um dos membros e a natureza colegial daquele órgão deliberativo”, lê-se na decisão a que o Observador teve acesso.
“Ricardo Salgado manifestou elevadíssimo grau de irresponsabilidade” na gestão do BES
Por outro lado, as declarações que Carlos Costa fez quer na conferência de imprensa de 3 de agosto de 2014 em que comunicou ao país a medida de resolução do BES, quer nas entrevistas que deu ao Expresso e ao Público em 2016 e em 2017, estão “enquadradas por finalidades do public accountability, processualmente justificadas e impessoais.” Mais: “As entrevistas encontram-se contextualizadas pela sindicância pública das decisões do BdP sobre a resolução do BES e a perda de idoneidade, assuntos de óbvio interesse e assinalada relevância pública. E que eram suscetíveis de merecerem a devida justificação perante a comunidade”.
O juiz Alexandre Leite Batista considerou ainda que as afirmações de Carlos Costa “não se afiguram capciosas ou destituídas de racional argumentativo e também não revelam intenção hostil ou malevolente para com o requerente.”
Após novo recurso de Salgado e de Morais Pires, as razões invocadas por Leite Batista vieram a ser corroboradas pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 11 de fevereiro de 2019.
“O que é importante para Ricardo Salgado é saber quem profere a decisão”
No único processo de contra-ordenação prestes a transitar em julgado no início de 2020, e no qual Salgado foi condenado ao pagamento de uma multa de 3,7 milhões de euros por atos dolosos de gestão ruinosa pela alegada falsificação da contabilidade da ESI — Espírito Santo International (uma das holdings de controlo do Grupo Espírito Santo) e o alegado esquema fraudulento de emissão de dívida de 1,3 mil milhões de euros que foi colocada em clientes do BES, a Relação de Lisboa voltou a recusar os argumentos do ex-banqueiro.
Numa decisão datada de 2 de maio de 2019, os desembargadores Maria Leonor Botelho, Maria do Carmo Ferreira e Trigo Mesquia (presidente da 9.ª Secção da Relação) qualificam as comunicações públicas de Carlos Costa como uma “evidente preocupação de esclarecimento do público, em geral, e dos clientes do BES, em especial” por forma a informar que a resolução do BES garantia “a continuidade da atividade da instituição”, sendo a melhor medida para proteger “os depositantes e demais clientes da instituição e a estabilidade financeira.”
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Além do mais, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa, o governador nunca “imputou concretamente a ninguém, designadamente ao recorrente Ricardo Salgado” ou a qualquer outro administrador do BES, a prática de quaisquer atos”, nem foi feita qualquer “alusão” a qualquer processo de contra-ordenação em curso.
Por isso mesmo, a desembargadora relatora Maria Leonor Botelho afirma: “Parece resultar que o que é importante para o recorrente [Ricardo Salgado] é saber quem profere a decisão, independentemente de quem procedeu à instrução do processo e de quem exerceu funções no conselho de administração do BdP.”
Acresce que “foram garantidos todos os direitos de audiência e de defesa, não se inferindo das declarações prestadas pelo sr. governador qualquer violação do princípio da imparcialidade”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa.