O The New York Times escreve que morreu um músico que “narrou a condição humana em canções”. A revista Rolling Stone diz que a América perdeu “um dos seus melhores compositores e cantores”. Bruce Springsteen descreve-o como “o tipo mais adorável do mundo” e “um verdadeiro tesouro nacional”. No Reino Unido, o jornal The Guardian noticia que morreu “um escritor de canções extraordinariamente dotado”. Estão todos certos: esta terça-feira, morreu uma das referências maiores, embora pouco afamadas, da música popular norte-americana, o cantor e compositor John Prine.
O músico tinha 73 anos e morreu com complicações associadas à doença Covid-19, pela qual foi recentemente hospitalizado em Nashville. Tinha ainda outros problemas de saúde antigos, nomeadamente dois cancros. Em 1998, foi alvo de uma intervenção cirúrgica para remoção de um tumor no pescoço que lhe tinha danificado as cordas vocais. Já em 2013, foi-lhe diagnosticado um cancro no pulmão, tendo sido sujeito a nova intervenção cirúrgica, desta vez para remoção de parte do pulmão esquerdo.
A notícia foi confirmada pela família do músico, em declaração enviada aos meios de comunicação norte-americanos durante a noite de terça-feira (madrugada de terça-feira para quarta-feira em Portugal). Ao longo da carreira, John Prine editou 18 álbuns de estúdio e somou prémios, tendo vencido por exemplo dois Grammy — os Óscares da música americana — e tendo sido nomeado para os mesmos galardões por 11 vezes. Figura ainda na “Songwriters Hall of Fame”, a lista de mais ilustres compositores da história da música popular.
O despontar em Chicago e as canções folk de saloon
De importância fulcral na história da música folk e música country dos Estados Unidos, John Prine nasceu no estado do Illinois, a 10 de outubro de 1946. Aos 14 anos, começou a tocar guitarra, iniciando um percurso de atividade musical que o inscreve hoje numa lista, reduzida, dos grandes nomes do cancioneiro norte-americano das últimas décadas.
Antes de se tornar um músico de renome a partir dos anos 1970, elogiado por artistas como Bob Dylan e Kris Kristofferson (como recorda o The New York Times), Prine trabalhou como carteiro e serviu as Forças Armadas norte-americanas.
Os primeiros momentos de brilhantismo foram mostrados localmente para os mais atentos, no final da década de 1960, em sessões de “microfone aberto” — disponíveis a todos os que quisessem participar e mostrar talento — de um clube de Chicago. Isto de acordo com um crítico do jornal local The Chicago Sun-Times que lhe descobriu o talento em 1970, chamado Roger Ebert. A primeira atuação ao vivo e pública nessas noites de “open mic” em Chicago, coroada com aplausos da plateia, John Prine recordou-a assim: “Foi como se de repente tivesse encontrado uma forma de comunicar sentimentos e emoções profundas. Descobrir isso de repente, de uma assentada, foi fantástico”.
Se quase uma década antes Bob Dylan emergira como lenda folk da comunidade musical do bairro de Greenwich Village, em Manhattan, Nova Iorque, John Prine despontou na cena musical de Chicago, cidade com ampla e eclética tradição musical. Mais do que isso: foi, entre os artistas que nos finais da década de 60 e início da década de 70 cativavam ouvintes com uma guitarra acústica e um microfone em clubes como o Earl of Old Town e o The Fifth Peg, o único que conseguiu posteriormente consturir uma carreira de dimensão nacional e internacional, cotando-se como um dos maiores cantores e compositores de canções folk e country das últimas décadas.
O talento captado pelos ouvintes locais não tardou a ser descoberto por boa parte da América que guardava no coração as canções de aroma a saloon, cantadas de chapéu na cabeça, ocasionalmente de bigode debaixo do nariz. Foi, porém, descoberto algo fortuitamente, depois de outro dos nomes maiores da canção americana, Kris Kristofferson, ter dado de caras com ele quando se deslocou a Chicago para um concerto.
Por insistência de Jerry Wexler, importante executivo do mercado da indústria discográfica da época que o descobriu através de Kristofferson, Prine assinou contrato com a editora Atlantic Records e dedicou-se à gravação de um primeiro álbum de originais, que lançou em 1971. De acordo com o The New York Times, esta foi a descrição com que Kristofferson o apresentou no ano anterior durante um concerto seu no bairro de Greenwich Village, que tinha Wexler na plateia: “Nunca ouvi nada assim. Não é possível alguém tão novo conseguir escrever de forma tão pesada [densa]. O John Prine é tão bom que talvez tenhamos de lhe arrancar os polegares”.
Homónimo e com canções como “Illegal Smile” e “Sam Stone”, mas sobretudo uma exemplarmente bem escrita e cantada de uma perspetiva feminina “Angel From Montgomery” (posteriormente tornada famosa por Bonnie Raitt), o álbum de estreia de John Prine colheu elogios na crítica norte-americana especializada. A comunidade que ainda idolatrava a canção popular norte-americana de raízes folclóricas estava sedenta de um grande talento com originalidade que pudesse seguir as pisadas de um Bob Dylan que, por essa altura, vivia uma fase de menor aclamação crítica.
Curiosamente, John Prine e Bob Dylan ter-se-ão mesmo encontrado e tocado juntos em 1972. Numa das primeiras atuações de Prine em Nova Iorque, no ano após a edição do seu álbum de estreia, o irreverente mestre juntou-se (ao que consta na harmónica) à jovem promessa durante uma residência de Prine no clube Bitter End, precisamente no bairro — Greenwich Village — onde Bob Dylan se revelara aos novaiorquinos no começo dos anos 1960. O episódio foi assim lembrado pelo próprio John Prine, na sua conta oficial de Facebook, em 2016:
Foi como um sonho. Fui desde cedo um grande fã do Bob Dylan e da sua canção “The Lonesome Death of Hattie Carroll”. Estruturei a “Donald and Lydia” [canção do disco de estreia de John Prine] na sequência desse tema — no que respeita a contar uma história e a ter no refrão a moral da história”.
Se as associações com Bob Dylan são feitas, é porque poucos como John Prine construíram carreiras originais mas com sonoridade nitidamente devedora das lições deixadas por um Bob Dylan apenas cinco anos mais velhos, mas com carreira iniciada mais cedo. Numa entrevista há 11 anos, em 2009, Dylan descreveu Prine como alguém cujo trabalho evidenciava um “puro existencialismo Proustiano”, mas também “viagens mentais pelo Midwest”, alguém que “escreve [escrevia] canções lindas”. Não disse, mas poderia ter dito que se tratava de alguém cuja voz era algo áspera e nasalada mas cuja escrita era musical e acutilante, versando como poucas sobre histórias e lições de amor e desamor, perdas e perdição, não raramente com um toque de humor muito seu.
Uma década em crescendo e dois discos marcantes: Sweet Revenge e Bruised Orange
Depois de um novo álbum editado em 1972, intitulado Diamonds In The Rough, a restante década de 1970 seria passada por John Prine em consolidação de afirmação de carreira. Em 1973 editou aquele que é ainda hoje um dos álbuns favoritos de muito fãs do músico e um dos mais aclamados da sua longa discografia, Sweet Revenge, mas o verdadeiro sucesso comercial apareceu dois anos depois, com o disco Common Sense e com o single “Come Back to Us Barbara Lewis Hare Krishna Beauregard”.
Os anos 1970, quase unanimemente considerados o período áureo de John Prine como cantor e compositor, não terminariam sem a edição de mais um álbum importante, talvez aquele em que o músico de country e folk melhor conciliou impacto nacional e sucesso comercial com canções que ficaram na memória dos fãs: Bruised Orange, em 1978. E ainda faltava o sucessor Pink Cadillac, o sexto álbum de estúdio de John Prine, lançado em 1979.
Daí em diante, John Prine passou os anos a editar álbuns um pouco mais intermitente, sem atingir um estrelato pop que a sua música não procurava e aliás parecia enfrentar em contramão, com canções aparentemente simples. A dificuldade era juntar a voz, as letras cuidados e os arranjos sempre clássicos, sempre certeiros. Nos anos 1980 e 1990, pouco mais de uma mão cheia de álbuns de estúdio foram editados e só o primeiro desses, Storm Windows, de 1980, foi lançado e promovido por uma editora multinacional, a chamada “major label”.
Seguir-se-iam anos longe dos holofotes, numa época em que, sem internet, mais facilmente um artista de carreira já razoavelmente firmada que se zangasse com a indústria musical e se lançasse numa empreitada de edições próprias arriscava ser lembrado apenas por um nicho de melómanos e fãs antigos que colecionavam os discos. Isto apesar de ter sido nomeado para vários Grammy especializados e ter até vencido um, na categoria de Melhor Álbum de Folk Contemporânea, em 1991, com The Missing Years. Os músicos convidados para o álbum mostram como a reverência a Prine por pares era nitidamente maior do que por ouvintes, naquele tempo: estavam lá artistas incomparavelmente mais populares como Bruce Springsteen e Tom Petty, por exemplo.
O regresso começou a ensaiar-se em 2010, já depois de um grave problema de saúde (tumor no pescoço) ter-lhe danificado as cordas vocais, com a edição de um álbum de homenagens feito por músicos e bandas como Justin Vernon (do projeto musical Bon Iver), Conor Obest, Lambchop e Justin Townes Earle. Contudo, só seis anos depois, em 2016, a notoriedade foi parcialmente recuperada, com um prémio que lhe foi atribuído ex aequo com Tom Waits e Kathleen Brennan — o PEN/Song Lyrics Awards, que teve como jurados Rosanne Cash, Paul Simon, Elvis Costello e o escritor Salman Rushdie, entre outros — e sobretudo com a edição de um álbum novo, que o resgatou parcialmente do esquecimento: For Better, or Worse.
Ao álbum de regresso de John Prine, em 2016, seguiu-se um ainda mais bem sucedido e aclamado pela crítica The Tree of Forgiveness, editado há dois anos. Foi o primeiro disco com canções originais e novas de John Prine em 13 anos mas não foi a última vez que deixou a voz registada em canções novas: há sensivelmente um mês foi editado um álbum novo do também veterano músico norte-americano Swamp Dogg, Sorry You Couldn’t Make It. Neste disco lançado há um mês, é possível ouvir John Prine cantar em duas canções, “Memories” e “Please Let Me Go Round Again”.
O nome do músico foi ainda inscrito no “Songwriters Hall of Fame”, a longa galeria de ilustres que inclui compositores e cantores célebres da história da música popular Leonard Cohen, Graham Nash, Jerry Garcia e Van Morrison (entre muitos e muitos outras).
John Prine morreu deixando a mulher, Fiona Whelan Prine — com quem se casou em 1996, depois de dois casamentos e dois divórcios —, três filhos, Jody, Jack e Tommy , dois irmãos, Dave e Billy e três netos, refere o The New York Times.
[Na última semana, o músico foi evocado no programa “Isto Não Passa na Rádio”, da Rádio Observador. Recorde aqui o momento:]