A Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) anunciou este mês que vai propor a classificação da Quinta da Murtosa, na freguesia de Mosteirô, em Santa Maria da Feira. A propriedade, também conhecida como Quinta de Sousa Brandão, o nome da família que há vários séculos a detém, foi habitada por algumas figuras ilustres, como o liberal Francisco de Sousa Brandão, que combateu nas Lutas Liberais do lado de D. Pedro, ajudou a fundar o Partido Republicano e foi responsável pelo traçado da linha de comboio que liga Coimbra ao Porto. Mas, se acreditarmos na lenda, o mais famoso português a cruzar a porta da Quinta da Murtosa não tinha Sousa Brandão no apelido, mas Queiroz.
“A Casa da Murtosa é (…) referida na obra de Eça de Queiroz A Ilustre Casa de Ramires — escrita em 1894 após um período de férias do autor em Portugal”, refere a justificação da Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN) para a abertura do processo de classificação da quinta, datada de 2014, que assenta no ”relevante interesse histórico, arquitetónico, artístico e paisagístico deste bem imóvel”. Para fundamentar a afirmação, as técnicas responsáveis pelo elaboração do relatório recorreram a três passagens do romance em que a Murtosa é referida. Uma delas diz o seguinte: “Pois eu, sem ser dos tais parceiros, também mando nos bocados de Portugal que mais me interessam porque me pertencem!… E sempre queria ver que esse S. Fulgêncio, ou o Bram Victorino, ou lá os políticos do Terreiro do Paço, se metessem a dispor nas minhas terras, na Ribeirinha ou na Murtosa… Era a tiro!”.
Proposta classificação de quinta em Santa Maria da Feira que terá sido visitada por Eça de Queiroz
Esta passagem, que reproduz parte da conversa entre Barrolo, a quem pertence a Murtosa, e Titó, “com quem mergulhou no vão da janela, numa conformidade de ideias”, nada diz sobre a localização da quinta no território português. As outras duas citações, que se referem igualmente à propriedade de Barrolo, dono “das mais ricas casas de Amarante”, também não adiantam qualquer informação, acrescentando apenas que a quinta ficava junto de uma “linda mata” e perto de uma “aldeia”, como muitas em Portugal. Não existe, aliás, nenhuma passagem no romance que diga claramente qual a sua localização e a justificação da DRCN não esclarece a razão pela qual se diz que Eça de Queiroz se terá inspirado nesta quinta do concelho de Santa Maria da Feira para criar a Murtosa de A Ilustre Casa de Ramires.
Mas, apesar das informações vagas fornecidas por Eça, será que a Murtosa do romance poderá ser a que está prestes a ser classificada como imóvel de interesse público? Haverá alguma razão na ligação estabelecida entre uma e outra? Ou não passará tudo de uma lenda? O Observador ouviu dois especialistas na obra do escritor português para tentar perceber se as afirmações do relatório da DRCN têm algum fundamento. Procurou também obter um esclarecimento junto desta mesma entidade mas, até ao momento da publicação deste artigo, não foi possível conseguir uma resposta.
António Apolinário Lourenço: visita de Eça à Quinta da Murtosa “é um ato de fé” sem “qualquer certificação histórica”
António Apolinário Lourenço, professor de literatura na Universidade de Coimbra e coordenador da área de Estudos Espanhóis da mesma instituição, é da opinião que “A Ilustre Casa de Ramires é uma obra de ficção e é errado, por isso, acreditar que o autor se ajustou obrigatoriamente a uma realidade geográfica concreta, que coincida inteiramente a cartografia oficial”. Os nomes que surgem no romance “são obviamente fictícios e só não direi arbitrários porque Eça escolheu, deliberadamente, não se comprometer com uma localização mais precisa, como fez, por exemplo, com a Leira de O Crime do Padre Amaro”, apontou o especialista ao Observador. “Há, no entanto, referências no romance a localidades concretas, como Lisboa, Porto, Amarante, Coimbra, Lamego, mas nenhuma é comprometedora para a reputação de uma pessoa real, como aconteceria se em vez de Oliveira se escrevesse, por exemplo, Braga. Nesse caso, não faltariam as indignações locais e as tentativas de identificação de pessoas reais com as personagens de Eça, a começar pelo governador civil que se adequasse ao perfil de André Cavaleiro. As referências a localidades concretas servem para criar no leitor a ilusão de que o que ali se conta é real ou poderia sê-lo.”
Lourenço defendeu esta mesma posição no estudo de 2018 “Lugares fictícios e protocolos realistas: Los Pazos de Ulloa, La Madre Naturaleza e A Ilustre Casa de Ramires”, no qual argumentou que não existem razões para crer que a Torre de Ramires, deste mesmo romance de Eça de Queiroz, foi inspirada na Torre da Lagariça, localizada em Resende e há muito associada à Ilustre Casa de Ramires, obra que conta a história de Gonçalo Mendes Ramiro — o “fidalgo da Torre” –, um bacharel de Direito descendente de uma Casa antiga que decide escrever uma novela histórica relatando os feitos heroicos dos seus antepassados medievais. Além de as duas torres ficarem geograficamente distantes uma da outra (a de Eça fica na região do Riba-Cávado, sendo que o Rio Cávado nasce em Trás-os-Montes e atravessa o Minho, e Resende pertence ao distrito de Viseu), a sua descrição nem sequer é coincidente.
Relativamente à Murtosa, o especialista contou 12 referências a este local ou à quinta com o mesmo nome no romance de Eça, que explica nas suas páginas que a quinta pertence a Barrolo, “senhor de uma das mais ricas casas de Amarante” e cunhado do protagonista, Gonçalo Mendes Ramiro. “Numa das referências, em que a personagem focalizada é a Gracinha, irmã de Gonçalo, é referida a aldeia que rodeia a quinta; noutras a Murtosa é referenciada como freguesia e até como concelho.” Trata-se talvez de “uma possível incongruência, mas Eça morreu sem ter concluído a revisão do romance, talvez mesmo sem o ter acabado”. É, no entanto, claro que a casa fica, tal como a de Ramiro, na região do Riba-Cávado, “próxima de Vila Clara, a cujo círculo eleitoral pertence. As circunscrições eleitorais eram, na época em que se situa a ação do romance, muito mais numerosas do que são agora, em que só há uma por distrito, e eram uninominais: só era eleito um deputado por circunscrição”, explicou.“Como sabemos, Gonçalo Mendes Ramires candidata-se a deputado pelo círculo de Vila Clara e obtém uma vitória ‘tremenda’ na Murtosa. A localização geográfica no romance não se ajusta, portanto, à da Murtosa do concelho de Vila da Feira.”
A arquitetura da casa parece também não corresponder à descrição do romance, embora esta seja relativamente vaga. “Não conheço nem poderei por agora visitar a quinta da Murtosa, mas Eça também não faz qualquer descrição desse local com exceção da referência à linda mata e aos altos muros de convento. Isso aplica-se à quinta da Murtosa… E a centenas ou milhares de propriedades em todo o país”, admitiu o professor da Universidade de Coimbra. “Nas fotografias disponíveis na internet, destaca-se o solar, de perfil senhorial e brasonado. No romance, não há qualquer referência ao solar, o que seria estranho se efetivamente Eça quisesse homenagear a propriedade habitada pela família Sousa Brandão. E ao contrário do que se descreve no romance, a quinta da Murtosa do concelho de Santa Maria da Feira não se encontra no centro de uma aldeia”.
A Torre da Lagariça está à venda. Será que inspirou mesmo Eça de Queiroz?
Para António Apolinário Lourenço, é também pouco provável que o escritor, que dizia conhecer tão mal Portugal, tenha estado na região. ”Considero muito improvável que Eça, que viveu quase toda a sua vida adulta no estrangeiro, tivesse tido a oportunidade de visitar a quinta da Murtosa, tanto mais que não lhe são conhecidos laços familiares ou de amizade com a família Sousa Brandão”, afirmou. “A crença popular de que Eça visitou a quinta e a quis homenagear é portanto um ato de fé, não carecendo, por isso, de qualquer certificação histórica.”
Carlos Reis: “Certamente há outras Murtosas. Também essas podem reclamar a condição de modelo inspirador de Eça”
Esta é também a opinião de Carlos Reis, professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Coimbra e especialista em Eça de Queiroz. “Com alguma regularidade, acontece que um topónimo ou uma propriedade, sobretudo rural, coincidem, em parte ou totalmente, com o que está escrito nalgum romance de Eça de Queiroz. E logo alguém conclui: ‘Eça esteve lá, viu e inspirou-se para este romance ou para aquele conto’”, começou por dizer ao Observador, dando como exemplo o caso da Torre da Lagariça. “Há não muito tempo aconteceu isso com a Torre da Lagariça, tendo-se concluído, sabe-se lá com que argumentos, que a dita Torre é o modelo de outra Torre, a que aparece na Ilustre Casa de Ramires. O meu colega António Apolinário Lourenço teve oportunidade de desmontar essa fantasia, mostrando claramente que se tratava de uma associação fantasiosa.”
O “vírus” atacou de novo, “até porque os tempos são propícios a isso mesmo. E uma vez que se procura conseguir a classificação da Quinta da Murtosa, no concelho de Santa Maria da Feira, como monumento de interesse público — um propósito louvável, mas que não justifica tudo —, aí está de novo A Ilustre Casa de Ramires a legitimar a iniciativa, só porque há uma Murtosa nas páginas do magistral romance”, considerou Reis, admitindo que a intenção é “boa”, mas não “suficiente para convencer quem tem algum sentido de exigência no tocante à relação das ficções com a realidade em que vivemos”. “Até porque a Murtosa da Ilustre Casa de Ramires – localizada no círculo eleitoral que, no romance, Gonçalo disputava – situa-se a uns alargados, para a época, 100 quilómetros da tal Torre da Lagariça. Refiro-me a esta Murtosa de que falamos, porque certamente há outras Murtosas com as suas quintas pelo país fora. Também essas podem reclamar, é claro, a condição de modelo inspirador de Eça…”
Para Carlos Reis, é claro: “Lamento desiludir os interessados: a relação das obras ficcionais com o espaço, com o tempo histórico e com as figuras que o habitaram não é linear nem especular. É, isso sim, uma relação de transformação e de modelização ficcional, com recurso a procedimentos sofisticados como a figuração de personagens, o desenho de lugares da ação, a alegoria e outros mais, levando, em geral, ao engendramento de uma ‘realidade’ autónoma. O seu confronto com a realidade empírica e tangível que conhecemos nada acrescenta à interpretação de romances ou de contos, de poemas épicos ou de dramas históricos. Todos os grandes escritores sabem disso e muitos fizeram questão em deixar bem claro, e Eça foi um deles, que não estavam cativos da realidade que conheciam”. “Não terá a Quinta da Murtosa atributos suficientes para conseguir a tal classificação, sem abusar do nome e do património literário de Eça de Queiroz?”, questionou o professor de literatura portuguesa.
A ilustre quinta dos Sousa Brandão, que terá servido de refúgio às tropas liberais e que viu nascer um dos fundadores do Partido Republicano
Independentemente da ligação a Eça, que parece não pesar na decisão de classificar a quinta, a Murtosa tem uma história muito antiga, que remontará à época medieval e que justifica, por si só, a decisão da DGPC de propor a sua classificação como imóvel de interesse público: “A casa e seus jardins, o tanque, o lago, a mata, os terrenos agrícolas e os outros edifícios de apoio que integram a Quinta da Murtosa formam um todo, edificado, histórico e vivencial. As características arquitetónicas e paisagísticas que preserva mantêm grande integridade e autenticidade. Entendemos por isso, e com base nos critérios utilizados por este Serviço, que deverá ser reconhecido como património cultural nacional”, refere o documento.
A Quinta de Sousa Brandão, também conhecida pelo nome da pequena localidade onde está localizada, o lugar de Murtosa, terá as suas origens na Idade Média e numa família nobre, talvez uma ramificação dos Sousa, da localidade de Arrifana, em Santa Maria da Feira, concluiu um relatório de acompanhamento arqueológico feito na zona pela empresa Empatia, em 2005, cedido ao Observador. A casa terá sido construída no século XVIII, ao longo de uma via muito mais antiga, também provavelmente com antecedentes medievais e relacionada com a vasta propriedade que terá pertencido em tempos à família Sousa Brandão, ainda hoje dona da quinta. Sofreu grandes alterações por volta de 1920, quando o então proprietário, Manuel Carlos de Sousa Brandão, mandou demolir a casa dos caseiros e mandou construir uma nova sala de jantar e cozinha. Apesar disso, as técnicas responsáveis pela elaboração do relatório que consta do processo de classificação consideraram que conserva “quase integralmente os ambientes existentes quando ainda estava habitada, encontrando-se o seu recheio praticamente intacto”.
Este caminho público que percorre a propriedade, a chamada Via Antiga de Mosteirô, que liga as freguesias de Fornos e Castelo da Feira, terá também sido construído no século XVIII, provavelmente sobre uma estrada antiga, talvez de origem romana. Foi durante muito tempo usado para transportar materiais necessários para as atividades que se desenvolviam na zona. Era por esta estrada que passavam os carreteiros que abasteciam a cidade do Porto com pedra das pedreiras da região e que se fazia o transporte de papel para as fábricas em Santa Maria da Feira. Terá sido pela Via Antiga que terão passado os blocos usados nalguns monumentos portuenses, nomeadamente na Sé do Porto. Foi classificada em 1992.
O primeiro incesto de Eça: antes de Carlos e Maria Eduarda, houve Vítor e Genoveva
Apesar de a história da casa remontar, pelo menos, ao século XVIII, foi no século XIX que viveram os seus habitantes mais ilustres, os filhos de Manoel Ferreira de Sousa Brandão. O mais velho, Vicente Carlos Correia de Sousa Brandão, nasceu em 1799. Foi magistrado, genealogista, bacharel de Leis pela Universidade de Coimbra e colaborador da Revista Universal Lisbonense, um seminário generalista editado de forma regular entre outubro de 1814 e junho de 1853 e, por isso, contemporâneo das Lutas Liberais, que tiveram início no final da década de 1820, na sequência da morte de D. João VI em 1826, e se prolongaram até 1834, quando D. Miguel aceitou a rendição nos termos que ficaram definidos na Convenção de Evoramonte. A casa da Murtosa terá, durante este período, servido de refúgio a alguns elementos das tropas liberais. O irmão mais novo de Vicente de Sousa Brandão, Francisco Maria de Sousa Brandão, envolveu-se na guerra, seguindo a fação de D. Pedro. Os dois irmãos não seriam os únicos Sousa Brandão a partilharem os ideais liberais — um tio, o padre José Maria de Sousa, foi executado em 1833 pelas força absolutistas de D. Miguel por ter aderido ao liberalismo.
Francisco de Sousa Brandão nasceu em Santa Maria da Feira, em 1818. Depois de concluídos os primeiros estudos, ingressou no Seminário de Lamego, no estudo de Humanidades. O seu tio, Pantaleão de Sousa, era cónego naquela diocese. Liberal fervoroso, terá sido ele a criar no jovem Francisco o interesse pela luta pelo liberalismo que o levou a voluntariar-se em 1834. Durante o conflito, participou em várias batalhas sob o comande do duque da Terceira e do conde de Vila Flor, como as de Santo Tirso e da Asseiceira, onde os miguelistas foram finalmente derrotados. Francisco foi um dos que assistiu à assinatura da concessão de Evoramonte, a 26 de maio de 1834, na condição de acompanhante do conde de Vila Flor. Pelo seu serviço durante as Lutas Liberais, foi homenageado com a Medalha das Campanhas da Liberdade.
Com o fim da guerra, dedicou-se aos estudos, ingressando primeiro na Academia Politécnica do Porto, que frequentou até 1840, e depois na Escola do Exército. O apoio a Passos Manuel e a ligação à falhada revolta de Torres Vedras levou a que fosse afastado do Exército e condenado ao degredo em África ainda na década de 1840, sendo obrigado a fugir e a estabelecer-se em França, onde ingressou na École de Ponts et Chaussées de Paris e se diplomou em Engenharia Civil. De regresso a Portugal em 1849, foi colocado à frente da direção de Obras Públicas dos distritos de Viseu, Vila Real e Bragança, cargo que se viu obrigado a abandonar sete meses devido aos seus ideais políticos, contrários aos do governo de Costa Cabral e próximos das correntes socialistas. Segundo o investigador Hugo Silveira Pereira, da Universidade Nova, que estudou o percurso de Francisco de Sousa Brandão, este tipo de perseguição política foi comum a outros engenheiros que fugiram de Portugal e procuraram refúgio em França.
Tudo mudou com a queda do governo de Costa Cabral em 1851 e o início da Regeneração, que deu a possibilidade a Francisco de se dedicar à construção de linhas ferroviárias, pelas quais ficaria sobretudo conhecido. Como apontou Hugo Silveira Pereira no seu estudo sobre o engenheiro português, “Sousa Brandão cedo percebeu a importância da construção ferroviária para a nação, para a classe a que pertencia e para si próprio, de maneira que, quando em 1854 foi colocado na direção de Obras Públicas de Vila Real, recusou por pretender ‘empregar-se com preferência em caminhos de ferro a que tenho dado maior atenção’”. Responsável por dirigir a a comissão encarregada de estudar a construção das linhas ferroviárias do Norte, Sul do Douro, Minho, Beira Alta e Beira Baixa, foi ainda responsável, juntamente com o francês F. Walter, pelo projeto da linha que liga Coimbra ao Porto.
Difusor dos ideais socialistas e associativistas, que tantos problemas lhe causaram, Francisco foi um dos fundadores, também na década de 1850, do primeiro jornal socialista português, o Eco dos Trabalhadores, juntamente com o romancista e crítico literário António Lopes de Mendonça. A publicação destinava-se aos trabalhadores e publicava sobretudo notícias sobre acontecimentos relacionados com o movimento associativo e artigos voltados para a doutrina socialista, embora incluísse poemas e romances em folhetins. Autor de Economia Social: o Trabalho (1857), onde argumentou a favor de uma economia social e da necessidade de instrução dos operários, esteve ligado à criação das primeiras associações operárias em Portugal e ajudou a criar o Banco do Povo. Na década seguinte, tornou-se deputado e defensor da classe operária. Foi também um dos fundadores do Partido Republicano Português, em 1876.
Francisco de Sousa Brandão morreu em Lisboa, a 26 de maio de 1892, a muitos quilómetros Mosteirô e da Quinta da Murtosa.