É só mais uma investigação, mas é também um daqueles contributos que pode ser mais relevante do que se imagina para alertar os países e empresas que estão a planear a reabertura e o fim do confinamento. O título é “Surto da Doença do Coronavírus num Call Center, na Coreia do Sul”, o local de publicação o site do instituto norte-americano de saúde pública Centro para Prevenção e Controlo de Doenças (CDC) e as ilações são muitas mas há uma que se destaca: no regresso ao trabalho, haverá poucas tão importantes quanto garantir que os funcionários mantêm efetivamente e fisicamente o distanciamento social nas empresas.

A investigação, que é assinada por vários autores com ligação ao Centro Para Prevenção e Controlo de Doenças da Coreia do Sul, à Fundação de Saúde de Seul — capital do país — e ao Governo da capital da Coreia do Sul, revê a incidência de contágios e a resposta das autoridades a infeções num prédio “arranha-céus” localizado numa zona movimentada de Seul.

A deteção da primeira infeção aconteceu a 8 de março, quando o Governo local foi “notificado de um caso confirmado de Covid-19 numa pessoa que trabalhava num prédio” a que os autores chamam “edifício X”. Foi também nessa altura que, como escrevem os autores, “a autoridade nacional em saúde pública” da Coreia do Sul, o Centro para Prevenção e Controlo de Doenças da Coreia (KCDC), foi “informado de um cluster [rede de contágios] de casos de Covid-19 num call center localizado num edifício” de vários andares, usado tanto para fins residenciais como para fins laborais e comerciais.

Nesse dia, a 8 de março, o Governo de Seul e a autoridade pública de saúde do país foram informados apenas de um primeiro caso positivo. Entre trabalhadores, moradores e visitantes do arranha-céus nos dias anteriores — que poderiam, por isso, ter estado em contacto com alguém infetado num dos 19 andares —, as autoridades identificaram mais de mil pessoas. A resposta foi pronta: não foram isoladas apenas as pessoas com contacto próximo com o infetado nem foram enviados para casa apenas os seus colegas de trabalho, todo o edifício foi encerrado e todos os moradores, funcionários e visitantes recentes do edifício foram testados.

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Como explicam os autores, “a 9 de março” — portanto, apenas um dia depois — as autoridades locais e as autoridades de saúde formaram “uma equipa conjunta” para responder à infeção detetada no arranha-céus. Foi então lançada uma “investigação epidemiológica com rastreio de contactos”. Como se pode ler no texto, o edifício estava “situado numa das zonas urbanas mais movimentadas de Seul” e tinha pisos de trabalho, com escritórios comerciais entre o 1º e o 11º andar e apartamentos residenciais “do 13º ao 19º andar”.

Foram então monitorizadas e investigadas “922 pessoas que trabalhavam nos escritórios comerciais, 203 pessoas que viviam nos apartamentos residenciais e 20 visitantes”. Todas foram testadas ao longo de quatro dias, entre 9 e 12 de março.

Todos os suspeitos que tiveram resultados positivos nos testes diagnósticos, portanto todos que foram “pacientes com caso confirmado”, foram isolados, enquanto os que tiveram testes negativos tiveram ainda assim de fazer uma quarentena de 14 dias. “Até ao fim da quarentena, acompanhámos e voltámos a testar todos os pacientes que tinham tido testes negativos”, referem os autores, explicando que foram também “investigados, testados e monitorizados os contactos de agregado doméstico dos pacientes que tiveram testes positivos, independentemente de terem sintomas ou não”.

Antes de se perceber o universo de pessoas que vieram a testar positivo e que vieram a revelar ter sido infetadas com o novo coronavírus, o que permite tirar várias ilações sobre medidas a evitar e a tomar no regresso do trabalho presencial em empresas e escritórios noutros pontos do mundo — como Portugal —, convém perceber que a reação das autoridades de saúde da Coreia do Sul não foi só rápida e firme, teve também na tecnologia um aliado.

Se a Comissão Europeia estuda ainda formas de conseguir acompanhar tecnologicamente os passos de cidadãos e possíveis infetados para lhes monitorizar os passos sem violar a privacidade e os dados pessoais, na Coreia do Sul o sistema de geolocalização implementado foi menos protetor de liberdades individuais. Ainda assim, permitiu às autoridades fazer algo em março que levantaria tremendos problemas éticos noutras regiões do globo: enviar, entre os dias 13 e 16 — portanto, entre cinco a oito dias depois da identificação do primeiro caso confirmado no edifício —, “um total de 16.628 SMS a pessoas que se aproximaram e estiveram a uma distância do edifício inferior a cinco minutos [a pé]”. Eis então o que foi feito com essas mais de 16 mil pessoas: “Identificámos essas pessoas utilizando os dados dos sistemas de localização dos telemóveis. As mensagens [enviadas] instruíam os recetores a evitar contacto com outros e a dirigir-se ao centro de testes à Covid-19 mais próximo, para serem testados”.

A reação rápida, embora com métodos porventura pouco ortodoxos para a preservação da privacidade e direitos de proteção de dados individuais, pode dar algumas pistas às autoridades de saúde de outros países para lidarem com a pandemia, até porque a Coreia do Sul, que tem uma população quase cinco vezes superior à portuguesa, teve menos de metade dos casos de infeção confirmada do que Portugal. Isto sem nunca ter decretado quarentena obrigatória e estando já com restaurantes, empresas e superfícies comerciais a funcionar com alguma normalidade.

Porém, a propagação da infeção pelo denominado “edifício X” de Seul em março sugere uma coisa: que medidas de distanciamento social e de limitação de contactos entre trabalhadores podem ser absolutamente decisivas na mitigação dos riscos de contágio em escritórios.

Como explicam os autores no estudo, depois do método de resposta habitualmente usado no país (que não é só “testar, testar, testar”, como recomenda a OMS, é também rastrear movimentos, identificar passos de infetados e pessoas que contactaram com estes), houve uma conclusão caricata: das 97 pessoas que foram diagnosticadas como infetadas, mais de 90 trabalhavam no mesmo andar, o 11º. Isto apesar de a primeira pessoa a evidenciar sintomas trabalhar não nesse piso, mas no 10º, no qual foram identificados ao longo de todo o processo de testes, isolamento e monitorização menos de 5% dos infetados no edifício. Pode comprová-lo através do gráfico que se segue:

Espalhou-se como pólvora num só andar. Porquê?

Todos estes dados podem ser intrigantes: porque é que no 11º piso a infeção espalhou-se como pólvora — ficaram infetados perto de 46%, quase metade, dos 216 funcionários, de acordo com as autoridades de saúde sul-coreanas — e nos restantes isso não aconteceu? Como se explica o surto ter tido capacidade de infetar 46% das pessoas num só andar, quando isso contrasta tão claramente com uma taxa de contágio muito inferior, de 8,5%, em todo o prédio?

Haver infetados em vários pisos era perfeitamente possível, dado que apesar de os empregados “não se movimentarem em regra entre andares” e não haver nenhuma “cantina para refeições”, os “moradores e funcionários do edifício X tinham contacto frequente à entrada e nos elevadores”, de acordo com os autores. Porém, a infeção propagou-se na sua vasta maioria num único piso, onde foram contagiadas mais de 90 pessoas.

Não há exatamente certezas sobre o que favoreceu o contágio no call-center do 11º andar deste edifício de Seul, mas há hipóteses. Eis uma das conclusões desta investigação: “Este surto evidencia de forma alarmante que o SARS-CoV-2 pode ser tremendamente contagioso em contextos como um escritório repleto de pessoas, como um call center”. Outra: “A magnitude do surto ilustra como um ambiente de trabalho com grande densidade [de pessoas] pode-se tornar um local de grande risco para a propagação da Covid-19 e potencialmente uma fonte de outras transmissões [em cadeias secundárias]”.

Embora não se saiba a que distância estavam habitualmente os funcionários do 11º andar deste edifício X diariamente, nem sequer que medidas preventivas foram tomadas no call-center para tentar evitar a propagação do surto, os autores disponibilizaram uma planta do edifício que mostra muito claramente que a vasta maioria dos trabalhadores estava habitualmente concentrada numa das áreas do escritório. A azul, na imagem seguinte, estão os lugares habitualmente ocupados por funcionários do call-center do 11º andar deste “edifício X” de Seul:

@ Centers for Disease Control and Prevention -CDC 

Embora não se saibam o quão próximo estavam os funcionários, admite-se que a resposta possa estar próxima disso: “Apesar de uma interação considerável entre trabalhadores de diferentes pisos do edifício X nos elevadores e na entrada, a propagação da Covid-19 limitou-se quase exclusivamente ao 11º andar, o que indica que a duração das interações (ou o contacto) foi provavelmente o principal facilitador para a propagação posterior do [vírus] SARS-CoV-2“.

No estudo, houve alguns dados que contrariaram os valores habitualmente registados de propagação do vírus em cadeias de transmissão secundárias e entre pacientes assintomáticos. No entanto, os autores levantam também uma hipótese que poderá explicar isso: “Uma política robusta de testes em massa de todos os pacientes com caso suspeito pode ter prevenido a transmissão assintomática, porque aos assintomáticos foi dada [cedo] informação sobre as suas possíveis infeções e portanto puderam isolar-se e não contactar com os membros do seu agregado doméstico”. Ou seja: não houve sequer margem temporal para que pudessem infetar outros sem se aperceber.

Em jeito de conclusão, dizem os autores: “As nossas descobertas demonstram a importância de testar todas as pessoas potencialmente expostas [ao vírus] e mostram que medidas de contenção atempadas podem ser implementadas e utilizadas no âmbito do surto nacional da Covid-19. Ao testar todas as pessoas potencialmente expostas e aquelas com quem essas pessoas contactaram para facilitar o isolamento de pacientes com casos sintomáticos e assintomáticos de Covid-19, talvez tenhamos ajudado a interromper cadeias de transmissão”.