Não é a primeira vez que o Presidente da República se afasta dos holofotes mais evidentes para soltar reações importantes à atualidade e no primeiro dia do desconfinamento, foi a uma rádio do Pico, Açores, que mostrou o seu desagrado com as celebrações do 1º de maio que ele mesmo permitiu, em contraponto, elogiou a postura da igreja católica nas celebrações eucarísticas, sobretudo quando se aproxima uma importante peregrinação. Marcelo diz que o “debate se misturou” e que as “realidades são distintas”, mas ele mesmo deixou implícita a comparação de comportamentos.

Na última renovação do estado de emergência, Marcelo tinha deixado claro que iria ser permitida a celebração do 1º de maio desde com o distanciamento físico necessário e não só — remetia para o artigo do decreto sobre o direito de reunião e de manifestação que esclarecia que podiam ser impostas regras pelas autoridades “incluindo a limitação ou proibição de realização de reuniões ou manifestações que, pelo número de pessoas envolvidas, potenciem a transmissão do novo coronavírus“. Foi um ponto de honra, para mostrar que o estado de emergência estava alinhado com as regras democráticas. A agilização da manifestação tradicional da Alameda Afonso Henriques, em Lisboa, foi acertada depois pelas autoridades sanitárias e é para elas que o Presidente empurra a responsabilidade pelo que se verificou nas ruas na passada sexta-feira.

As imagens de ajuntamentos junto à Alameda, depois da manifestação organizada com espaço entre os participantes, fez disparar as críticas e também algum desconforto junto da Igreja Católica que mantém o culto coletivo suspenso, bem como a peregrinação do próximo 13 de maio. “Este debate misturou-se com o 1º de maio. São duas realidades distintas, a Igreja definiu a sua posição antes do 13 de maio”.

Já quanto à manifestação das centrais sindicais, Marcelo confessou, numa entrevista por telefone à rádio Montanha, nas Lajes do Pico: “Quando fiz esta regra [no decreto do estado de emergência] pensei numa cerimónia mais simbólica. Tive uma interpretação mais restritiva, do tipo da cerimónia do 15 de abril”. “A interpretação das autoridades sanitárias foi mais vasta do que eu tinha no meu espírito”, acrescentou.

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No Chiado, em Lisboa, à porta de uma livraria que visitou no primeiro dia de desconfinamento, acrescentou aos jornalistas que a sua ideia “era mais simbólica, como o 25 de abril, que me bati muito para que fosse num número inferior a 100 pessoas“. Um exemplo que não foi seguido por quem decidiu depois. “As autoridades sanitárias é que decidiram”, justificou-se o Presidente: “O decreto dava poder às autoridades sanitárias para apreciarem a matéria e elas apreciaram”.

À rádio açoriana tinha já dito que também as forças de segurança acabaram por “interpretar que os dirigentes sindicais tinham exceção” à regra de não circulação entre concelhos que valia para todos os portugueses. E reconhece que isso motivou “críticas e preocupações”, mas que “felizmente os portugueses, numa forma maioritária, no resto do fim de semana deram exemplo de grande clama e não embarcarem em aventuras”.

O Presidente diz mesmo perceber as críticas “à dimensão e características do que se passou. O máximo que posso dizer, uma vez que respeito as autoridades e forças de segurança e neste momento não nos podemos dividir, é que a minha ideia era mais simbólica e restritiva e não desta dimensão e número“. Quando, à porta da livraria do Chiado, foi confrontado com estas declarações e questionado sobre se não tinha gostado do que viu na rua na sexta-feira passada, Marcelo disse que não tinha mais nada a dizer sobre o assunto.

Na conferência de imprensa sobre o boletim epidemiológico diário na Direção Geral de Saúde, o secretário de Estado António Sales foi confrontado com estas declarações do Presidente da República e apenas afirmou que “às autoridades de saúde cabe a definição das regras sanitárias, tendo em conta a melhor evidência em cada momento”, sendo que “a cada momento a realidade vai evoluindo”. E acrescentou: “As realidades de hoje não são as de ontem”. Recusou-se a comentar as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, mas reiterou a declaração naquilo que acabou por ser uma resposta: “A definição de regras sanitárias compete às autoridades de saúde”.

A Igreja seguiu “bom senso” e o medo de maio: junho trará “nova verdade”

A situação serviu, no entanto, de contraponto — ainda que indireto — com a postura da Igreja Católica que diz ter dado “um bom exemplo” na gestão das suas celebrações. “Isso [1º de maio] não tem a ver com qualquer limitação à Igreja Católica e outras confissões e que, pelo seu pé, escolheram dar um bom exemplo. E por isso estou muito garanto”. A comparação entre o que não se mistura estava feita.

As cerimónias em Fátima (ao ar livre mas sem peregrinos), relativas ao 13 de maio, são aquelas que “o bom senso e as medidas sanitárias aconselham”, sublinhou o Presidente que ainda apontou que dois dos santos “ligados a Fátima morreram com a penumónica”, referindo-se às crianças videntes, Jacinta e Francisco Marto, canonizadas em 2017 pelo Papa Francisco no Santuário de Fátima. “A Igreja tem presente quando está perante uma epidemia desta envergadura“, referiu focando os princípios católicos de “salvaguarda do direito à vida e à saúde”. E assumindo também, como católico, que é o “primeiro a sentir a falta de celebrações eucarísticas, mas isso por um valor maior que é o direito à vida”.

Antes da “tempestade no copo de água” (assim classificou esta polémica) já tinha deixado, na entrevista à rádio açoriana, alertas sobre mês que começou agora, dizendo mesmo que “maio é enganador”. “Os resultados a nível nacional nas próximas semanas serão muito esperançosos porque decorrem de um confinamento durante o estado de emergência que durou” mas que esta fase “se repercute duas ou três semanas depois”. Ou seja, Marcelo prevê que “uma nova verdade surja, depois dos passos dados na reabertura a ritmos diferentes, em junho”. “Durante junho é que começaremos a ter o retrato de como a passagem de uma menor convivência para uma maior convivência se projeta em termos de número de infetados e o stress que provoca ou não nas estruturas de saúde”, argumenta.

“O mês de maio é enganador, vai dar números baixos mas os efeitos serão em junho e, depois, os efeitos das aberturas de junho serão visíveis no fim de julho”, detalhou ainda Marcelo que diz que “o desafio ainda não terminou”. “Até agora conseguimos o mais difícil e o é mérito é de todos. O stress sobre as estruturas da saúde foi contido nos internamentos e cuidados intensivos, mas temos noção que o desafio não terminou e haverá desafios sempre grandes na saúde”.

“Com a passagem de uma menor convivência para uma maior convivência e em como isso se projeta em termos de número de infetados, veremos o stress que provoca ou não nas estruturas de saúde”, disse sem fechar a porta a uma nova onda que pode até sair de um desconfinamento pouco cuidadoso.

Ao Governo pediu “clareza” na apresentação do Orçamento suplementar que vai ter de avançar no Parlamento nos próximos tempos. Mas também coloca peso na decisão do Conselho Europeu para a conclusão de um plano de recuperação económico sólido para a a União. O Presidente pede “montantes significativos”: “A União Europeia tem de entender isto.” Também não deixa aqui de picar o Governo, concretamente nos atrasos na resposta ao layoff simplificado que criou para responder a esta crise, apontando que “cada mês que passa e o dinheiro não chega ao bolso das pessoas e das empresas, é mais um mês na vida das pessoas de carne e osso”.

No final da entrevista, Marcelo ainda disse quais os três piores momentos deste período para si. Começou pela quarentena que cumpriu ainda antes de tudo começar. “Ninguém compreendeu”, recorda. O segundo foi a declaração do estado de emergência e o terceiro a sua renovação. E este porque “a situação já estava muito melhor e as pessoas começaram a aliviar”. Nessa altura, explica, sentiu ainda que “se prolongasse o estado de emergência matava-o. A partir do momento em que se banalizasse, se fosse preciso usar mais tarde num agravamento do surto ou num novo surto era arma que não se podia utilizar outra vez”. Mas na situação de calamidade, “é preciso que os portugueses saibam que não não se pode brincar em serviço”.