Uma declaração para “obter ganhos políticos”, que deixou o Presidente “estupefacto” e “desconfortável”. É assim que no Palácio de Belém é descrito o momento em que António Costa praticamente deu como garantida a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa. Uma frase que Costa levava “preparada”, acredita-se na Presidência, e que obrigou Marcelo a malabarismos argumentativos para nem se afastar ou comprometer com uma decisão, mas também não acelerar o calendário que tem na cabeça. O problema é que logo a seguir veio a declaração do Presidente sobre o Novo Banco, que foi entendida como um claro apoio a Costa e as duas coisas juntas pareceram um guião combinado de apoios trocados. “Pelo contrário, o Presidente foi apanhado de surpresa”, garante fonte de Belém ao Observador.
Mas não totalmente. Segundo revela um dos membros do núcleo duro de Marcelo, o Presidente começou a desconfiar que havia alguma coisa planeada quando comia um pastel de bacalhau no bar da AutoEuropa, a fábrica que ambos, Costa e Marcelo, tinham ido visitar na manhã desta quarta-feira. A dada altura, o administrador da fábrica terá sugerido a marcação de um almoço no refeitório, e terá sido o próprio António Costa a divulgar ali que já teria uma data na cabeça.
A segunda pista surgiu já quando o primeiro-ministro fazia a declaração à imprensa. Marcelo estranhou que Costa tivesse cábulas num papel, e terá percebido que havia uma mensagem pré-preparada para divulgar à comunicação social. O que dificilmente adivinharia é que o primeiro-ministro pusesse as presidenciais a ‘martelo’ na conversa e desse a entender um apoio à recandidatura de Marcelo: “Se viemos cá no primeiro ano do atual mandato do Presidente da República, e agora voltámos cá no último ano do mandato, a terceira data é óbvia: é no primeiro ano do próximo mandato do Presidente da República, e faço-me desde já convidado para acompanhar o senhor Presidente da República para aqui virmos para o ano partilhar essa refeição“. E ainda fez referência ao momento em que a conversa do almoço terá começado: “É que o Presidente da República já experimentou o pastel de bacalhau, mas eu fiquei com vontade de experimentar a refeição completa”.
As imagens das televisões mostravam o ar surpreendido de Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente que, segundo contam fontes de Belém ao Observador, tinha “previsto um discurso mais vago”, viu-se obrigado a reagir de improviso, sem perder o controlo de um calendário que quer arrastar até ao final do ano. Problema, o que lhe saiu batia certo com as previsões de Costa: “Recordava o primeiro-ministro que em 2016 estávamos a sair de uma crise longa e difícil na economia, agora vamos continuar a confiar nos portugueses e vamos ultrapassar esta pandemia e os efeitos económicos e sociais este ano e nos anos próximos. E eu cá estarei, cá estaremos todos — com o espírito de equipa que se formou e que nada vai quebrar. Cá estarmos todos este ano e nos próximos anos a construir um Portugal melhor”.
Mas se estas palavras foram lidas como a confirmação da esperada recandidatura, Belém não quer deixar já essa porta declaradamente aberta: “Aquela declaração deixou o Presidente numa posição desconfortável. Não é seguramente aquilo que se ajusta à estratégia que está pensada, até porque, para todos os efeitos, se houver recandidatura será nos moldes da anterior, isto é, independente e sem apoios partidários. E o sinal que saiu daqui foi que o eventual candidato já tem um partido colado a si”.
Costa quis desviar atenções da descoordenação do Governo?
Certo é que na equipa de Marcelo, ninguém duvida que a frase de Costa não saiu de improviso. Já vinha preparada e “tinha objetivos políticos e razões conjunturais” até porque, lembra fonte de Belém, “Costa é um político hábil e experiente, não tem ingenuidade. E terá medido as consequências antes de assumir um compromisso desta natureza que coloca o próprio partido socialista numa posição difícil”. Portanto, havia claramente uma intenção e, desse ponto de vista, reconhece-se na presidência, foi bem conseguido, já que pôs os jornalistas todos a falar sobre o assunto, uma vez criado o facto político.
Por isso, no Palácio de Belém a dúvida agora é porque quis Costa trazer para cima da mesa uma questão que não estava lá? “Talvez se esteja a sentir mais fraco nesta altura. Pode ser o desgaste provocado com os problemas dentro do Governo com o ministro das Finanças, pode ser das polémicas associadas à gestão da pandemia, do lay-off à festa do Avante. Pode haver alguma questão na frente europeia”, admite um dos elementos da equipa do Presidente.
A verdade é que o tema mais quente do momento acabou por ser levantado durante a visita numa pergunta dos jornalistas ao Presidente da República. Precisamente a polémica da injeção de capital no Novo Banco que tem posto António Costa e Mário Centeno de lados diferentes da barricada. E se Costa queria sacudir essa poeira, Marcelo acabou por lhe passar a escova ao colocar-se ao lado do primeiro-ministro: “Estava anunciado para maio o processo conclusivo da auditoria. O senhor primeiro-ministro esteve muito bem no Parlamento quando disse que fazia sentido que o Estado cumprisse as suas responsabilidades, mas naturalmente se conhecesse previamente a conclusão da auditoria”.
Agora, face ao impacto que essas palavras tiveram, interpretadas como o retirar do tapete a Centeno, com a oposição a questionar as condições políticas do ministro, Rio a pedir a sua demissão, e os dois — Costa e Centeno — reunidos à noite em São Bento, a Presidência não quer ser vista com a mão no detonador. Fonte de Belém prefere sublinhar que o Presidente começou a intervenção lembrando que “o Estado português cumpre o que tem de cumprir e se assumiu o compromisso tinha de o cumprir”, mas que ao mesmo tempo quis dar relevância política a uma auditoria que tinha sido pedida pelo próprio Presidente.
Quanto à disputa pública que por essa altura tinha subido de tom (com o ministro das Finanças no Parlamento a implicar diretamente o primeiro-ministro), a equipa de Marcelo argumenta que o Presidente não tinha ouvido ainda as palavras de Centeno nesse dia (a audição ainda corria quando começou a visita à fábrica de Palmela) e que não tinha dados suficientes sobre quem sabia e não sabia da injeção de capital e quem deu a ordem para avançar com o empréstimo (à Presidência terão chegado várias versões e nem todas apontam para o próprio Mário Centeno).