A ligação estabelecida entre Eça de Queiroz e a Quinta da Murtosa, em Santa Maria da Feira, é apenas “conjetural”, afirmou a Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN) em resposta às questões colocadas pelo Observador na sequência da notícia da proposta de classificação do imóvel, que a entidade associou desde logo à figura do escritor apesar de não haver evidências da sua passagem pelo lugar.
Segundo a DRCN, esta “associação conjetural” tem “por suporte o confronto entre a descrição da Quinta constante d’A Ilustre Casa de Ramires e a realidade paisagística deste imóvel”. Dois especialistas na obra de Eça ouvidos pelo Observador no final de abril consideraram que a descrição que existe da Murtosa no romance é demasiado vaga para se poder concluir que se trata da quinta da freguesia de Mosteirô.
A Direção-Geral de Património Cultural (DGPC) anunciou que ia propor a classificação de imóvel de interesse público para Quinta da Murtosa, uma propriedade com uma longa história e ligações às Lutas Liberais, no final do mês passado. Além de alguns ilustres habitantes, a quinta é há muito associada à figura de Eça de Queiroz e ao romance A Ilustre Casa de Ramires, que refere em diversas passagens um lugar com o mesmo nome.
Embora não existam provas de que o escritor alguma vez lá tenha estado e que a Murtosa da obra seja a Murtosa de Mosteirô, pertencente à família Sousa Brandão, a DRCN referiu na justificação para a abertura do processo de classificação, datada de 2014, que a quinta “é (…) referida na obra de Eça de Queiroz A Ilustre Casa de Ramires — escrita em 1894 após um período de férias do autor em Portugal”, dando a entender que teria sido nessa altura que o escritor teria visitado o lugar.
Esta Quinta da Murtosa vai ser classificada. Será mesmo a de Eça e de “A Ilustre Casa de Ramires”?
Para fundamentar a afirmação, as técnicas responsáveis pela elaboração do relatório citaram três passagens do romance em que a Murtosa é referida. Uma delas foi apontada na resposta dada ao Observador: “A sua salvação seria o abandono da cidade, o encerrado retiro numa das quintas do Barrolo, a Ribeirinha, sobretudo a Murtosa, com a linda mata, os musgos, os muros de convento, a aldeia em redor para ela se ocupar como castelã benéfica”. A citação, tal como as restantes, nada diz sobre a localização da quinta no território português.
Contactado pelo Observador por altura do anúncio da proposta de classificação, António Apolinário Lourenço, professor de Literatura na Universidade de Coimbra, apontou que Eça não fez qualquer descrição da Murtosa “com exceção da referência à linda mata e aos altos muros de convento. Isso aplica-se à quinta da Murtosa… E a centenas ou milhares de propriedades em todo o país”, afirmou o especialista, defendendo que a arquitetura da casa parece não responder ao pouco que diz o romance e é pouco provável que Eça tenha estado na região:
“Nas fotografias disponíveis na internet, destaca-se o solar, de perfil senhorial e brasonado. No romance, não há qualquer referência ao solar, o que seria estranho se efetivamente Eça quisesse homenagear a propriedade habitada pela família Sousa Brandão. E ao contrário do que se descreve no romance, a quinta da Murtosa do concelho de Santa Maria da Feira não se encontra no centro de uma aldeia.”
Também Carlos Reis, professor de Literatura Portuguesa na mesma instituição de ensino e especialista em Eça, mostrou ser da opinião que a Murtosa de Mosteirô não é a Murtosa do romance. “Até porque a Murtosa d’A Ilustre Casa de Ramires – localizada no círculo eleitoral que, no romance, Gonçalo disputava – situa-se a uns alargados, para a época, 100 quilómetros da tal Torre da Lagariça”, disse ao Observador. “Refiro-me a esta Murtosa de que falamos, porque certamente há outras Murtosas com as suas quintas pelo país fora. Também essas podem reclamar, é claro, a condição de modelo inspirador de Eça…”
A classificação da Quinta da Murtosa é, para o professor, “um propósito louvável, mas que não justifica tudo.” “Não terá a Quinta da Murtosa atributos suficientes para conseguir a tal classificação, sem abusar do nome e do património literário de Eça de Queiroz?”, questionou Carlos Reis.