Em 1913, numa carta ao poeta Mário Beirão, Fernando Pessoa afirmava que a sua própria cabeça, “em matéria de movimento”, era como a Rua do Arsenal. “Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projetos, fragmentos de cousas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas… Toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma — para a bruma — pela bruma…”, escreveu.
Alguma desta literatura “que vai da bruma — para a bruma — pela bruma” era em verso, como o próprio admitiu, mas muita era também em prosa. A verdade, é que apesar de Pessoa ter ficado para a posteridade como poeta e se ter afirmado como tal, a maior parte do seu espólio está em prosa. Pode parecer estranho, mas faz todo o sentido se pensarmos que não são só os contos que são escritos em prosa. O teatro também o pode ser, assim como a crítica, o ensaio, o aforismo, a entrevista e a carta, tão importante para a compreensão da obra e pensamento pessoanos. A vida de um poeta não se pode fazer só em verso, e no caso de Pessoa, que explorou tantos géneros, formas e línguas distintos, a poesia era apenas uma das suas muitas facetas.
A nova antologia de Jerónimo Pizarro é um convite a descobrir mais este lado, talvez menos conhecido, do escritor que foi como uma “constelação”. Com um tamanho mínimo, é a segunda do género a ser lançada pela Tinta-da-China, depois de em 2018 ter sido publicada a Antologia Mínima de poesia. Nesta Antologia Mínima de prosa é possível encontrar os três principais heterónimos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, contos e prosa poética, mas também muitas outras personagens fictícias e géneros literários, que Pessoa soube cultivar durante toda a vida e em especial durante as “crises de abundância”, como lhes chamou na carta a Beirão.
Mas que significado tinha esta prosa para Fernando Pessoa, um escritor que sempre se viu como poeta, embora tenha trabalhado muitos outros géneros literários, de que esta antologia é espelho? Na opinião de Jerónimo Pizarro, “foi a nossa agenda editorial que tornou Pessoa apenas ou maioritariamente poeta, e é de nós que depende transcender essa agenda. Não precisamos apenas de vates românticos, mas também de ficcionistas e pensadores”. Em entrevista ao Observador, o investigador e professor universitário lembrou que Pessoa “foi poeta, mas também muitas outras coisas. Estou a ouvir uma frase da carta a Casais Monteiro de 13 de janeiro de 1935: ‘Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas’”.
É verdade que Pessoa se descreveu a ele próprio como “poeta e escritor” na famosa nota biográfica de 1935, parecendo “isolar o poeta do prosador”, e que tem havido sempre a tendência de “isolar os dois mundos” porque “por vezes nem nos lembramos que o teatro pode ser escrito em prosa ou em verso, e basta, por exemplo, confrontar o Fausto e O Marinheiro”; mas também é verdade o seu espólio, “não é, para a nossa eventual surpresa, maioritariamente poético”.
Pizarro admite que tem “procurado fazer agir a palavra ‘poeta’ de forma menos inconsciente” e “recorrer mais ao termo mais amplo ‘escritor’, porque Pessoa não deixou apenas uma obra em verso”, lembrou. “Paul Valéry e León de Greiff também não, mas é difícil não dar a primazia à designação ‘poeta’… Tem mais prestígio… E ainda hoje editoras como a INCM deixam descontinuar a prosa e voltam a reeditar a poesia, que era, afinal, o projeto inicial da Equipa Pessoa. Mas onde está a prosa?”, questionou. “Essa é uma pergunta que não tem perdido atualidade.”
Essa prosa que inunda a “arca” pessoana não foi apenas assinada pelo ortónimo, mas por muitos outros “eus”. “De resto, existe, embora inédita ou publicada, a prosa de Charles Robert Anon, de Alexander Search, de Jean Seul de Méluret, de Pantaleão, de António Mora, de Vicente Guedes, de Bernardo Soares, dos heterónimos e de vários autores fictícios: J. G. Henderson Carr é referido como poeta e ensaísta, por exemplo, e Carlos Otto como teórico do desporto, poeta e tradutor”, apontou Pizarro, que teve o cuidado de mostrar a multitude de nomes que surgem associados ao espólio pessoano em prosa e que incluem os três principais heterónimos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas também outros, como António Mora, Barão de Teive ou Maria José.
“Voltei a ler a carta da corcunda e comoveu-me. Muito mais do que alguma prosa do Mora”
Maria José é um caso peculiar no espólio pessoano. Autora de um único texto conhecido, “A Carta da Corcunda para o Serralheiro”, é uma corcunda de 19 anos que recorre à escrita para comunicar com o homem por quem está apaixonada, o senhor António, um serralheiro que costuma passar sob a sua janela. Nas notas relacionadas com a carta, Pessoa escreveu: “Como uma grande alma pode ser ninguém!”. Maria José é uma das poucas personagens femininas de Pessoa e, segundo a datação apresentada por Pizarro e Ferrari, a última das suas máscaras (a sua missiva terá sido escrita entre 1929 e 1930).
Jerónimo Pizarro, que reproduziu a carta de Maria José em Eu Sou Uma Antologia, voltou a lê-a para esta coletânea em prosa. Comoveu-o muito. “Voltei a ler a carta da corcunda e comoveu-me. Muito mais do que alguma prosa do Mora, por exemplo”, admitiu. “A corcunda costumou-se a ser invisível para os outros e fala do mundo como sendo alguma coisa que não lhe pertence por completo. Não terá um filho e menos de mil homens, como uma anã num romance de Valter Hugo Mãe. Tem apenas os seus sonhos à janela e ela própria não sabe o que lhe está permitido desejar.”
Além de textos de diferentes heterónimos, o editor incluiu também nesta Antologia Mínima escritos de heterónimos sobre outros heterónimos com o objetivo de mostrar um pouco da conversa que Pessoa manteve entre as diferentes personagens autorais. “Não é que não existam poemas-réplicas em que Pessoa ponha em diálogo alguns autores inventados por si. Mas o diálogo decorreu com mais frequência através da prosa, até porque nós podemos ler, por exemplo, as ‘Notas para a recordação do meu mestre Caeiro’ na tradição dos diálogos socráticos e filosóficos”, apontou Pizarro. “E existem os muitos prefácios e textos críticos atribuídos a autores fictícios e redigidos quer para promocionar um novo livro, quer para discutir uma distinção.”
Este diálogo constitui apenas uma ínfima parte da diversidade de géneros e discursos que podem ser encontrados na antologia, que refletem a “Rua do Arsenal” que era a cabeça do escritor. Para Pizarro, é, aliás, impossível “pensar em Pessoa sem pensar a multiplicidade. Sei que não inclui muitos textos sobre comércio e publicidade, por exemplo, ou sobre história ou política, mas essas foram opções. Por vezes, optei por uma prosa com um quantum de ficção e com uma certa elaboração literária”, admitiu. “Pessoa trabalhou imensos géneros, escreveu textos diversíssimos e pareceu-me mais interessante essa diversidade do que uma certa monotonia — essa que sinto a ler muitos textos sobre a República, por exemplo.”
Da mesma forma que mistura heterónimos famosos com personagens menos conhecidas, nas páginas da antologia também é possível encontrar prosas emblemáticas, como a famosa carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos hererónimos ou algumas das missivas enviadas a Ophélia Queiroz, e pérolas obscuras. Uma delas, destacada por Jerónimo Pizarro no prefácio e pela Tinta-da-China na sinopse disponibilizada, é a “Crónica Decorativa”, um texto de 1914 sobre o Sr. Boro, professor da Universidade de Tóquio, que dialoga “com Wilde e nomeadamente com a ideia da artificialidade na literatura”.
“A melhor prosa pessoana está no Livro do Desassossego”
Não se pode falar de prosa pessoana sem falar do Livro do Desassossego. A obra do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares preenche várias páginas da Antologia Mínima, mas não a domina. “Não queria eclipsar a antologia com esse livro, que, em princípio, já foi lido por quem ler a antologia”, começou por explicar Jerónimo Pizarro, acrescentando que, “de certa forma, a melhor prosa pessoana está no Livro do Desassossego, que também já passou e continuará a passar por diversas antologias. Até porque projetos como o Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego, de Coimbra, convidam aos visitantes a criarem o seu próprio livro”.
Pizarro “sabia que tinha que ir além; que tinha que incluir uns trechos, para deixar um chamado à releitura do Livro, mas que tinha que existir um equilíbrio. Ou muitos. Porque procurei incluir textos de diversas épocas e alguns escritos em inglês e em francês. No caso do Livro do Desassossego, tentei apresentar textos da primeira e da segunda fase, textos que nunca consegui esquecer, como ‘Remoinhos, redemoinhos’, e textos que tinham quase uma função meta-poética, ‘Prefiro a prosa ao verso’, e que podiam ter dado título à antologia”, explicou.
Seria também impossível passar por cima das cartas, algumas delas muito importantes para o conhecimento da sua obra, como explicou o especialista: “Algumas cartas de Pessoa são muitíssimo mais do que documentos de carácter informativo, para confirmar um envio ou marcar um encontro, por exemplo. Para isso bastava um telegrama, e mesmo assim alguns telegramas de Pessoa têm muita piada. Em muitas das suas cartas, Pessoa está a criar uma comunicação especial com uma outra alma e faz digressões notáveis”.
Um bom exemplo disso é uma carta, “das poucas que conhecemos”, de Pessoa a Sá-Carneiro, datada de 14 de março de 1916 e reproduzida na antologia. Nesta, afirma: “Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio, amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no Livro do Desassossego. Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto. (…) Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histeroneurastenia fundamental, com todas aquelas interseções e esquinas na consciência de si próprio que dele são tão características…”. Na opinião de Pizarro, “Pessoa convida-nos a ler o seu epistolário à procura dessas frases, desses esgares…”.
Jerónimo Pizarro sabe que “nenhuma antologia é absoluta”, e que a sua também o não será, mas considera que “era necessário lançar uma proposta e abrir a discussão”. “Sempre achei que a liberdade devia ser achada dentro de certas limitações formais. Optar pelo adjetivo ‘mínima’ foi uma auto-imposição: implicava percorrer a lista de 136 autores fictícios, os muitos textos publicados em vida, os numerosos trechos do Livro do Desassossego, concordar ou discordar do destaque que Pessoa deu a certos textos, concordar ou discordar do destaque que a crítica tem dado a outros. Ler, reler, escolher, fazer consultas, esboçar shortlists e ter a consciência antecipada do não conseguimento total”, explicou. Porque, verdade seja dita: “Vamos passar anos e décadas a antologiar Pessoa”. Também nisso, Fernando Pessoa parece ser infinito.