Como é que se ridiculariza algo que já de si é ridículo? Como é que se parodia algo que contém a sua própria paródia? Como é que se conta uma anedota sobre uma realidade intrinsecamente anedótica? Este parecia ser o desafio posto a Will Ferrell em “Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga” de David Dobkin (“Os Fura-Casamentos”), feito para a Netflix, que o ator interpreta ao lado de Rachel McAdams, escreveu com Andrew Steele e também produz. Como se faz, então, uma comédia satírica sobre algo tão espectacularmente “kitsch”, piroso e delirante, e tão apoteoticamente execrável em termos musicais como o Festival Eurovisão da Canção e a subcultura em que assenta? Como é que Ferrell ia conseguir aplicar-lhe o mesmo tratamento gozão que deu às corridas de “stock cars” em “As Corridas Loucas de Ricky Bobby” ou à patinagem artística em “A Glória dos Campeões”?

[Veja o “trailer” de “Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga”:]

Só que aqui a música é outra. Will Ferrell não quer napalmizar de gozo o Festival Eurovisão porque gosta do Festival Eurovisão. Ele é um fã, não um detrator. A fita até é feita em colaboração com a União Europeia de Radiodifusão, que organiza o certame desde o início, em 1956. Há uma sequência musical numa festa onde aparecem vários concorrentes e vencedores dos anos anteriores, caso de Conchita Wurst ou de Netta, cantando um “medley”, Salvador Sobral surge numa rua de Edimburgo a tocar piano e interpretar a canção com que ganhou a edição de 2017, e o apresentador da BBC Graham Norton, outro incondicional do Festival Eurovisão, interpreta-se a si mesmo. Não são poucos os momentos em que “Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga” roça o filme promocional.

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[Veja uma entrevista com Will Ferrell:]

“Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga” aparenta ir ser uma demolição cómica em regra do mais inenarrável concurso musical produzido anualmente na Europa. Mas afinal, é uma demonstração de carinho para com o mesmo da parte de um ator cómico americano que o descobriu e se encantou com ele graças à mulher, a atriz sueca Viveca Paulin (para preparar a fita, Will Ferrell esteve em Lisboa no festival de 2018, integrado na delegação sueca, tendo seguido tudo, desde os ensaios até ao espectáculo final). Por isso, quem esperava uma sátira vitriólica e implacável, tem que se contentar com uma comédia excêntrica e a cair para o meloso.

[Veja uma entrevista com Rachel McAdams e Dan Stevens:]

Ferrell e McAdams interpretam Lars Erickssong e Sigrit Ericksdottir, dois islandeses amigos de infância que vivem numa pequena cidade costeira, têm um duo musical (muito mau), os Fire Saga do título, e poderão ser irmãos (o que não convém, dado que Sigrit está secretamente apaixonada por Lars desde pequena — Piers Brosnan faz o mulherengo e azedo pai de Lars). Sonha irem representar a Islândia ao Festival Eurovisão da Canção, e apesar de terem feito uma triste figura no concurso nacional, para que foram selecionados por puro acaso, acabam mesmo por ir para a Edimburgo, onde o certame se vai realizar, depois de um estranho acidente ter eliminado todos os outros concorrentes. Mas na Islândia ninguém está a torcer por eles, porque se ganham, o país não tem capacidade financeira para organizar o festival e volta a ir à bancarrota, como aconteceu anos antes.

[Veja uma cena do filme:]

Mesmo frustrando as expectativas daqueles que esperavam um massacre implacável e lhes saiu uma brincadeira espalhafatosa, “Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga” tem os seus momentos de riso, por vezes mesmo de gargalhada rasgada. E uma interpretação desopilante de Dan Stevens (“Downton Abbey”) no papel do ultra-piroso (e “gay” muito pouco secreto a fingir de femeeiro engatatão) cantor russo Alexander Lemtov, que pelo aspeto euro-azeiteiro, pela canção e respetiva coreografia que leva ao festival, pela forma como fala inglês e pelo comportamento geral, é a personagem do filme que mais perto consegue estar de uma sátira perfeita a um típico concorrente do “freak show” humano, musical e cénico em que o Festival Eurovisão da Canção se transformou.

“Festival Eurovisão da Canção: A História dos Fire Saga” já está disponível na Netflix