Já tem tudo pronto em casa: a mesa está posta, a aparelhagem já dá música, as bebidas estão no gelo, os aperitivos estão organizados e o jantar está quase no ponto. À mesa deverão sentar-se 10 pessoas e o encontro está marcado para as 21h em sua casa. Já passaram 30 minutos da hora e ainda ninguém chegou. Tenta ligar para saber se está tudo bem e não há resposta. Volta a tentar — só quase às 22h é que alguém atende e diz que afinal não conseguiu ir. Qualquer pessoa numa situação deste género ficaria chateada: comprou comida, esforçou-se para arranjar tudo e em cima da hora ninguém aparece. Agora imagine o mesmo cenário aplicado a um restaurante que emprega várias pessoas, trabalha com curtas margens de lucro e vive um dos períodos económicos mais difíceis dos últimos anos.
O fenómeno das reservas não cumpridas — os chamados “no show”, na gíria do setor — não é novo e sempre existiram vozes que o condenaram. Hoje, porém, um pouco por todo o mundo surgem campanhas e protestos que falam da “falta de respeito” e das consequências gravíssimas deste tipo de comportamento. É neste momento tema quente e isso justifica-se com a frágil (e em alguns casos dramática) fase de recomeço em que muitos restaurantes lutam para superar o impacto da pandemia nos seus negócios.
“Vocês são o pior tipo de cliente, são “egoístas”. Espero que tirem um tempo para olhar bem para vocês…” Direta e sem rodeios, foi assim a mensagem que o chef britânico Tom Kerridge (um dos primeiros no Reino Unido a conseguir duas estrelas Michelin num pub), partilhou com os mais de 430 mil seguidores que o acompanham via Instagram. A publicação data de 12 de julho e foi motivada por uma reserva de 27 pessoas, para um sábado à noite, que simplesmente não apareceu nem deu qualquer tipo de aviso ou justificação.
“Este setor, como muitos outros, está à beira do colapso. O vosso comportamento é vergonhoso, míope e prejudicial”, escreve ainda o cozinheiro. O fenómeno dos “no show” não é novo mas a luta pela sobrevivência que recai sobre todo o tipo de restaurantes nesta era pós-confinamento deu ainda mais força a este desabafo. Em pouco tempo vários outros cozinheiros replicaram a demonstração pública de desagrado e nasceu o movimento “No More No Shows”, iniciativa de sensibilização que se infiltrou nas redes sociais e que até em Portugal marcou presença.
No Reino Unido, a BBC fala da sensação de raiva que tem inundado o setor da restauração, principalmente depois de levantadas as restrições mais apertadas — os números que refere são intimidantes. A emissora britânica destaca o exemplo de um restaurante chamado Piña, em Sheffield, que no primeiro dia de reabertura,a um sábado, teve 30 reservas que simplesmente não apareceram. Em Harrogate, o Fat Badger teve 15 não comparências nos três primeiros dias de funcionamento. O chef e restaurateur Paul Ainsworth, que diz ter feito um empréstimo de 400 mil libras só para conseguir reabrir as portas do seu restaurante na Cornualha, também utilizou a sua conta de Instagram para classificar de “obsceno” o episódio em que num dos primeiros dias de funcionamento 27 reservas não apareceram, conta o The i num extenso artigo que ilustra bem o cenário causado por tudo isto. Portugal, claro, não é exceção.
Não pode ir? É favor cancelar
Passaram poucos dias desde que o chef José Avillez se pronunciou sobre este assunto através da sua conta de Instagram. Num post onde aparece junto da sua equipa do Belcanto (que reabriu há poucas semanas), depois de agradecer o apoio dos clientes que têm recebido, deixa um pedido: “Se reservar venha. Se por alguma razão não puder vir, cancele, por favor, com alguma antecedência. Não falte quando confirmou a sua presença umas horas antes.” Ninguém é imune a este problema que cada vez ganha mais peso num setor já em dificuldades, dos restaurantes mais simples aos dos grandes chefs. Ao Observador, Avillez confirma isso mesmo: “Entendo que possam acontecer imprevistos, o que eu acho que é de mau gosto é não se cancelarem reservas.”
Apesar de admitir que ainda é difícil perceber se os “no shows” têm aumentado nos últimos tempos, José Avillez não hesita ao afirmar que este “é um tema que vem de há muito tempo” e há muito que é discutido na comunidade da restauração. As restrições impostas pela prevenção de contágio do coronavírus obrigaram os restaurantes a diminuírem para metade a sua lotação e o próprio clima de receio em relação a sair de casa tornou o setor “ainda mais sensível”, motivo que confere ainda mais impacto negativo às reservas que simplesmente não aparecem. “Isto acontece muito mais com o cliente português do que com o estrangeiro. Como estamos com mais portugueses talvez sintamos mais agora”, ressalva. Como exemplo refere situações em que o restaurante “liga a tentar confirmar reserva e ninguém atende”, “pessoas que às 18h confirmam que vão e depois às 20h não aparecem” ou até casos de clientes que “ligam às 20h30 para reservar para às 21h” e nunca chegam a lá ir. “Emergências acontecem sempre. Não é por arrogância que pedimos isto [para se evitar reservas não cumpridas], é para proteger o negócio”, remata o empresário e cozinheiro.
Hugo Brito, do restaurante Boi-Cavalo, em Alfama, também sabe bem o que é lidar com reservas que não se concretizam. No total já conta com seis anos de vida no típico bairro lisboeta e foi um dos portugueses que partilhou nas suas redes sociais a mensagem do movimento internacional “No More No Shows”, que divide a sua motivação em três simples elementos: 1) “Os planos mudam, é na boa, simplesmente diz-nos qualquer coisa”, 2) “Remarca para outra data, nós continuamos a adorar receber-te”, 3) “Incentiva os teus amigos e família a fazer o mesmo”.
Apesar de reconhecer que “é mais típico serem os portugueses a não aparecer”, os turistas não são santos, nem mesmo as celebridades: Em julho de 2018 o músico britânico Rag’n’Bone Man, que ia atuar no NOS Alive, deixou o Boi-Cavalo pendurado com uma reserva de nove pessoas. Mais uma vez os números podem não parecer expressivos (especialmente tendo em conta as várias dezenas dos exemplos estrangeiros já mencionados), mas se pensarmos que o espaço só senta 24 pessoas, a coisa muda de cenário. “Muitos clientes ainda têm uma cultura de desrespeito e olham para o restaurante como um serviçal e não como uma empresa. É preciso passar a informação de que isto não é aceitável, tem de haver consequências. Conheço histórias de pessoas que numa noite ficaram sem metade da sala”, conta.
“Isto no fundo é uma questão de princípios. É uma falta de ética e de respeito”, conta ao Observador Miguel Azevedo Peres, responsável pelo restaurante Pigmeu na zona de Campo de Ourique, Lisboa. Apesar de admitir logo de início que nos últimos tempos o seu caso tem sido exceção — “Neste momento em modo pós-estado de emergência não nos podemos queixar disso, felizmente” –, conhece bem a realidade que sentiu na pele muitas vezes, antes da pandemia. “A verdade é que era muito comum antes [da pandemia]. Chegámos a ter reservas que não apareciam, nós ligávamos, diziam-nos que não tinha dado mas conseguia-se ouvir por trás o barulho de outro restaurante”, conta. Em média, revela, antes da pandemia tinham uma reserva não concretizada por dia de funcionamento, valor que parece pouco mas é “muito grave” para os restaurantes mais pequenos.
Olhando para norte, para a cidade do Porto, encontram-se exatamente os mesmos problemas. O chef Vasco Coelho Santos tem dois espaços na Invicta, o Euskalduna Studio (mais exclusivo e pequeno com oferta de fine dinnig) e o Sêmea (mais descontraído e com comida mais casual). No primeiro, “felizmente”, como o próprio conta ao Observador, não têm tido muitos casos de “no shows”. Já no Sêmea a situação é diferente e Vasco assume que tem acontecido com frequência. “Já tivemos casos de pessoas que tinham reserva, ligam antes de chegar, perguntam se estamos cheios e se estivermos dizem ‘então não vou'”, conta. À semelhança daquilo que acontece nesta sua casa na movimentada (pelo menos no tempo pré-Covid) Rua das Flores, Vasco conhece vários outros restaurantes que estão a passar pelo mesmo. “Muitas pessoas acham que um restaurantes é só para passar um bocado e não pensam que é um negócio, e que as pessoas que lá trabalham têm família. Comportamentos assim são uma falta de respeito para com o seu trabalho”, remata.
Dinheiro que se avança e não se recupera: o peso da perda
É uma questão de fazer as contas e ter em consideração a conjuntura global recente. “Estamos neste momento com 12 lugares. Por cada reserva que se aceita, outra não deu para aceitar. Numa altura em que o turismo está ao rubro ou em zonas de muito tráfego pedonal, a possibilidade cobrir o que perdes quando uma reserva não vem é maior. Nesta altura de pós-confinamento, nem um cenário nem outro são possibilidades — as pessoas não passeiam na rua. Ora quem não aparece passa a ser um custo irrecuperável. É uma perda financeira quantificável, dinheiro que avançaste e não recuperas”, explica Hugo Brito.
Por outras palavras, o impacto assenta principalmente em duas questões: primeiro há os custos já assumidos pelo restaurante que pensam que vai receber 10 clientes, faz as compras e contrata o pessoal necessário para responder a esse número de pessoas, mas depois só aparecem cinco — pelo menos metade do gasto que já foi feito não consegue ser recuperado; e depois há a frustração (emocional e financeira) de quem recusa reservas que de facto se concretizariam por já estar lotado com outras que ficarão sem efeito. O assunto tem muitas nuances e depende muito de caso para caso, mas de um ponto de vista mais geral passa essencialmente por aqui.
“Há um lado de investimento que não é recuperado e outro de rendimento que não é auferido. Marcas para quatro pessoas às 20h30. Recusas quatro pessoas para a mesma hora por já teres um acordo verbal com quem reservou antes mas ele depois não se concretiza. É dinheiro que podias ganhar — que para nós, nesta fase, é vital — mas não ganhas”, reforça Hugo Brito.
O discurso de José Avillez vai no mesmo sentido, com o chef a explicar que “perder uma reserva que não dá para recuperar é o pior”, sendo sempre preferível, por uma questão de respeito e para tentar dar margem ao restaurante para reagir, avisar — “Se se cancelar uma reserva às 18h para uma refeição às 21h é em cima da hora mas ainda dá para recuperar. Não dizer nada é que nos deixa de mãos atadas”. É por causa destes casos que Avillez afirma que em espaços seus como o Belcanto, por exemplo, vão “voltar a implementar um pedido de pagamento de um sinal no momento da reserva” — “se não puder vir e avisar com 24h de antecedência” consegue recuperar mas se não o fizer arrisca-se a perdê-lo. “Não queremos ficar com o dinheiro das pessoas, é uma questão de proteção”, explica.
Listas negras ou cobranças à priori? Qual a melhor solução?
Se a solução para este problema fosse fácil ou óbvia já existiria, disso ninguém dúvida. A dificuldade em chegar a algum consenso prende-se com aquilo que muitos acreditam ser a origem da questão: o contexto cultural e a forma, quase inconsciente, como é visto o setor.
“Que não haja dúvidas: isto afeta a todos e tem a ver com a facilidade com que se faz uma reserva e com a relação descartável que existe entre as pessoas”, defende Miguel Peres, do Pigmeu. Refere-se a hábitos e modos de ser muito antigos e que são difíceis de ultrapassar. Como diz o chef Hugo Brito: “A cultura do ‘no show’ tem muito a ver com uma cultura de atribuição de status. As pessoas não fazem isto no médico, ainda há o respeitinho pelo senhor doutor. Se eu tiver uma hora marcada para o dentista vou-me despachar para lá chegar a horas e não faltar. Porque não acontece isso com os restaurantes também?”, atira.
Em termos de soluções mais práticas o diálogo parece levar a duas opções: a cobrança de um valor à priori, no momento da reserva, ou a utilização das chamadas “listas negras” que visam identificar os comensais mais problemáticos e impedi-los de causar estragos. Dessas duas, a cobrança prévia parece ser a mais consensual. José Avillez, por exemplo, defende poder haver uma “cativação de certo valor pago adiantado” que possa ser “devolvido em algumas circunstancias e não devolvido noutras” — filosofia que já vai aplicando em alguns dos seus projetos.
Apesar de ser muito comum em várias partes do mundo a cobrança antecipada ou a cedência de dados bancários como “seguro” anti-faltas de comparência, em Portugal ainda continua a haver alguma resistência. “É uma coisa cultural e nós não temos esse hábito de dar um sinal ou dar os dados do cartão de crédito. Como isso não é prática comum há sempre uma fricção entre quem propõe e quem não se sente bem com isso”, explica Hugo Brito. É por causa disto que muitos espaços hesitam em avançar com esta política mas isso, perante este cenário, pode vir a mudar. Como diz Miguel Peres, “não seria necessário mas quando isto [as faltas de comparência] acontece recorrentemente passa a ser preciso. O mais óbvio é começar-se a cobrar qualquer coisa logo no momento da reserva.”
Esta solução é algo que Vasco Coelho Santos já aplica, pelo menos em parte, há algum tempo. Não só consegue ter “uma pessoa 100% dedicada só às reservas” que faz um trabalho de proximidade com o cliente e isso, de alguma forma, consegue reduzir o número de faltas, como também cobra um sinal para grupos com mais de quatro pessoas. “O meu restaurante é pequeno, com isto tudo mais pequeno ficou. Cobro mais ou menos 50€ por pessoa para grupos com mais de quatro”, explica. Como nunca há cenários 100% perfeitos, este modelo já lhe causou algumas dores de cabeça, claro — “quando fechei agora por causa da Covid tive de devolver 5 mil euros em pré-reservas” –, e há sempre quem tente aldrabar o processo — “já houve quem criasse cartões virtuais, tipo MB Way, só com uns quantos euros, e desse esses dados no momento da reserva”. Mesmo assim, este cenário parece ser cada vez mais inevitável, caso nada mude.
A opção meio misteriosa das “listas negras” também é ventilada por entre o setor. Miguel Peres diz que elas existem, que todos os restaurantes têm uma, “quer assumam ou não”, e Coelho Santos diz que no Porto, pelo menos, os colegas do ramo vão partilhando nomes e avisam sobre clientes com historiais problemáticos. Na prática não é nada de oficial e mesmo que pretendesse ser, levantaria sempre outras questões, como refere Hugo Brito, que não exclui totalmente esta opção: “O problema da lista negra é que teria de ser uma ferramenta digital e teria os problemas da proteção de dados. Devia haver uma aplicação de restaurantes partilhada entre nós e com conhecimento dos clientes mas isso precisaria sempre de uma clarificação legal.”