Rui Pinto, que usou um colete à prova de balas durante o julgamento, diz que o seu trabalho como denunciante “está terminado”. Terminada também está a primeira sessão do caso Football Leaks que arrancou esta sexta-feira e retoma no dia 15 de setembro. O alegado hacker, principal arguido, fez uma declaração de cerca de cinco minutos.

O meu trabalho como whistleblower está terminado”, disse aos juízes, garantindo ainda que nunca recebeu qualquer dinheiro pelas informações que recolheu e denunciou.

A juíza que preside ao julgamento ainda tentou interromper, para colocar perguntas sobre a acusação, mas Rui Pinto disse que queria apenas fazer uma declaração e pediu-lhe que, deixando outras respostas para outra fase do julgamento.

Estou aqui numa estranha situação, de arguido e testemunha protegida. Não me considero um hacker, sou um whistleblower. Tornei pública muita informação relevante, que nunca seria conhecida de outra maneira”, sublinhou.

Rui Pinto fez uma breve declaração de cerca de cinco minutos JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Pinto disse até que ficou “surpreendido” com o que descobriu. Sobre o facto de, agora, ter decidido colaborar com a polícia — cedendo, por exemplo, os acessos aos discos rígidos que lhe foram apreendidos, o que permitiu que fosse libertando —, explica que foi incentivado a isso:

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“Encontro-me em colaboração com autoridades nacionais que me incentivaram a colaborar.”

O principal arguido do processo diz que os meses que esteve detido lhe permitiram refletir sobre tudo o que tinha acontecido, lamentando aquilo a que chama de “campanha” contra ele:

Fui objeto de uma campanha de calúnia, de ameaça. Não me queixo. Estive sete meses em isolamento total. Foram 7 meses difíceis, mas de reflexão. O meu trabalho como whistleblower está terminado.

Aníbal Pinto diz que Doyen lhe ofereceu 1 milhão para revelar identidade do hacker

Depois de Rui Pinto, o advogado Aníbal Pinto também quis prestar declarações, explicando detalhadamente os conversas que teve com o representante da Doyen de forma a mostrar ao tribunal que achava que o negócio que estava a intermediar era um contrato de prestação de serviços entre o hacker e a empresa — e não um crime de extorsão de que está acusado. O advogado diz que o Ministério Público omitiu algumas mensagens e emails trocados por si e que seriam fundamentais para perceber que está inocente. Em relação a alguns pontos da acusação chegou mesmo a a dizer que “não há nada mais mentiroso e falso”.

Aníbal desmontou por completo a acusação, començando por explicar que recebeu uma chamada de um número com um indicativo estrangeiro e, como tem uma filha “casada com um estrangeiro”, não hesitou em atender. Mas era Rui Pinto que “precisava de um advogado para fazer um contrato” — não disse qual — e queria pedir-lhe se o autorizava a dar o seu contacto à Doyen, a empresa com quem faria o tal contrato — o que também acedeu. Só que, depois, recebeu um email do hacker a explicar “o resto da informação” que não tinha dito “ao telefone”. Nele, admitia que era o autor do Football Leaks, pedia-lhe para se manter no anonimato e enviava-lhe o email que tinha trocado com Nélio Lucas, ex-administrador da Doyen.

Terá sido ao ler esse email que, na sua tese, se apercebeu que poderia estar em causa mais do que um contrato de prestação de serviços. É que, nesse email, Rui Pinto dizia que “a fuga” era “bem maior” do que imaginava e pedia uma “doação generosa” — o que, aos olhos da acusação, era a forma de o hacker exigir dinheiro — entre meio milhão e um milhão de euros — para não divulgar a informação que tinha sobre a Doyen.

Quando vi alguém a negociar entre meio milhão e um milhão de euros vi logo que era uma treta. Ou se pede meio milhão ou se pede um milhão”, disse Aníbal Pinto.

No entanto, diz também que naquele momento não teve “qualquer dúvida que podia estar perante uma extorsão”. E considerou que não podia “colaborar com nada ilegal” — tendo inclusive alertado para isso mesmo Rui Pinto — que “tem idade de ser” seu “filho”, apontou. Aníbal explicou ao tribunal que disse ao hacker que estava “disponível para o acompanhar juridicamente, mas não para cometer crimes”.

O advogado explica que Rui Pinto ter-lhe-á ligado depois a garantir que o objetivo não era “cometer ilegalidades”. Só que a Doyen tinha sido “atacada” e queria contratá-lo e queria a sua ajuda para fazer o contrato. Aníbal Pinto diz que não pôs sequer “em causa que fosse Rui Pinto a atacar a Doyen”, mas sim que o ataque tivesse sido feito por outra pessoa desconhecida. “Para mim fazia todo o sentido a Doyen, que foi hackeada, querer contratar o Rui Pinto“, explicou.

Questionado pelo tribunal sobre se não achou estranho todas estas negociações, Aníbal disse que “por achar estranho” teve “um comportamento cauteloso”. Até porque tinha ficado “com a ideia” de que “Rui Pinto era teso” e que não lhe ia pagar — o que arrancou uma gargalhada ao arguido e a toda a audiência. “Ainda hoje tenho essa ideia”, clarificou.

Aníbal Pinto explicou depois, na sequência da chamada de Rui Pinto, trocou mensagens com o representante da Doyen, Pedro Henriques, a tentar combinar um reunião para falar sobre o tal contrato. Mas a reunião demorou a acontecer já que o advogado Pedro Henriques muitas vezes combinava ligar-lhe, mas não ligava e as combinações foram caindo por terra — o que terá levado Aníbal Pinto a pôr um ponto final por sentir que estava a “perder tempo”. “Acabou”, exemplificou em tribunal o que terá dito na altura.

No entanto, entre avanços e recuos, a reunião — quer viria a ser seguida pela PJ — acabou por acontecer. Nela, revelou Aníbal Pinto, o ex-administrador da Doyen, Nélio Lucas ter-lhe-á dito: “Somos muito ricos”. Para depois oferecer um milhão para revelar identidade do hacker — o que o advogado recusou.

Aníbal Pinto continua a ser ouvido na próxima semana

A próxima sessão está marcada para o dia 15 de setembro. Nessa sessão que deverá apenas ocupar o período da manhã, o arguido Aníbal Pinto vai responder às perguntas do MP e dos advogados. Na sessão seguinte, dia 16, serão ouvidos alguns dos assistentes do processo: os advogados Luís Pais Antunes, da PLMJ, e João Medeiros e Inês Almeida Costa, ex-advogados da PLMJ.

Só no dia 17 começaram a ser ouvidas as primeiras testemunhas. A juíza sugeriu que fossem ouvidas já duas testemunhas, mas a procuradora alertou que precisaria de várias horas para ouvir a primeira testemunha do julgamento: o inspetor da PJ, José Amador.

Primeira sessão começou com atraso de uma hora

O alegado hacker tinha chegado à sala do tribunal pouco antes do início da sessão. Não entrou pela porta principal, ao contrário do advogado Aníbal Pinto, que também é arguido no processo, e que entrou pela porta da frente do Tribunal Central Criminal de Lisboa pouco antes das 9h30. Minutos depois chegaram os advogados do alegado hacker, Francisco e Luísa Teixeira da Mota, e o francês William Bourbon — que é também advogado do whistleblower Edward Snowden. Entraram todos pela porta principal do edifício e não prestaram declarações.

[Veja aqui as imagens de Rui Pinto em tribunal e as medidas de segurança que rodeiam o julgamento]

Fotogaleria. As imagens de Rui Pinto na sala de audiências e das medidas de segurança que rodeiam o julgamento

A advogada Sofia Ribeiro Branco, que irá representar a Doyen Sports Investements Limited, foi a primeira a chegar ao Campus da Justiça, antes das 9h00.

A sessão começou com algum atraso e depois de os jornalistas serem informados de que, por questões de segurança, não poderiam ter computadores e telemóveis na sala de audiência. A medida aplica-se também — e pelas mesmas razões de segurança — a um auditório onde a sessão vai ser transmitida por videoconferência e que fica num outro edifício, a vários metros de distância da sala onde estará Rui Pinto. Esse auditório foi disponibilizado para que os jornalistas que não couberem na sala de audiências (com uma lotação muito limitada por causa da Covid-19) possam assistir aos trabalhos. Mas também aí não poderão usar telemóvel ou computador.

Rui Pinto está sentado num canto da sala, oposto ao da porta de entrada. Ninguém ficará sentado ao seu lado ou atrás dele.

É apenas uma das medidas de segurança pouco comuns que rodeiam este julgamento. No Campus da Justiça, há dezenas de polícias com metralhadoras em punho e um perímetro de segurança alargado, desde as primeiras horas da manhã.

Os primeiros elementos das forças especiais da PSP começaram a chegar ao Campus de Justiça pouco depois das 7h00. Antes, já tinha sido montado um perímetro de segurança alargado, com grades a separar a porta de entrada do edifício do restante recinto. Dezenas de elementos da Unidade Especial de Polícia encontram-se nas imediações do tribunal com metralhadoras, distribuídos por grupos em vários pontos do Campus da Justiça. Ao que o Observador apurou no local, dentro de momentos deverão chegar cães do Grupo Operacional Cinotécnico da PSP para detetar a eventual presença de engenhos explosivos que possam ter sido colocados no tribunal.

As medidas de segurança prendem-se com o facto de Rui Pinto se encontrar ao abrigo de um programa de proteção de testemunhas que faz com que esteja num lugar secreto e que tenha de ser trazido de lá até ao tribunal protegido por elementos do Corpo de Segurança Pessoal da PSP e sujeito a regras apertadas. Daí que as horas previstas para a sua chegada não foram divulgadas.

O julgamento acontece no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O alegado hacker vai responder por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Arguidos, crimes, vítimas, datas, segurança. Guia rápido para acompanhar o julgamento de Rui Pinto

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, também é arguido no caso e responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

Rui Pinto. O rapaz do “cabelito espetado” que já entrava nos computadores da escola antes de ser o “John” do Football Leaks

O alegado pirata informático estava em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, mas numa habitação disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que vai julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.