Os países europeus estavam menos preparados para lidar com a pandemia da Covid-19 do que os países asiáticos, afirma um estudo publicado esta semana na revista Lancet que analisa o comportamento de vários países na pandemia, com o objetivo de extrair lições e recomendações para o período de reabertura de fronteiras e retoma da atividade económica.

De acordo com o estudo, a generalidade dos países asiáticos levaram a cabo procedimentos de testagem, rastreio e isolamento dos casos de Covid-19 logo desde o início da pandemia, enquanto os países europeus demoraram mais a implementar estratégias sistemáticas de controlo da pandemia. A utilização de máscaras também foi adotada mais rapidamente na Ásia do que na Europa.

Os autores do estudo apontam vários fatores para esta diferença. Por um lado, a experiência dos países asiáticos com pandemias anteriores (como a de SARS em 2003 e a de MERS em 2015) levou os países a adotarem políticas de saúde pública mais robustas, investindo em infraestruturas capacitadas para lidar com doenças infecciosas. Por outro lado, “o público também foi mais bem condicionado para cooperar com regras estritas e vigilância invasiva em tempos de crise, comparado com o público de países sem experiência de grandes epidemias“. Na Ásia, a maioria das pessoas aceita, com mais facilidade, abdicar da privacidade em troca da segurança comunitária.

O estudo olhou para nove países e territórios da Ásia/Pacífico (Hong Kong, Japão, Nova Zelândia, Singapura e Coreia do Sul) e da Europa (Alemanha, Noruega, Espanha e Reino Unido) e procurou perceber como é que se comportaram, desde o início da pandemia, em cinco parâmetros: conhecimento do estado da infeção; envolvimento da comunidade; capacidade da saúde pública; capacidade do sistema de saúde e controlo de fronteiras.

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É com base nestas cinco áreas de atuação que os autores do estudo estabelecem cinco pré-requisitos para que os países possam aliviar as medidas de restrição e retomar a normalidade possível. Até porque, como nota o estudo logo no início, tem havido abordagens distintas sobre a forma como as medidas devem ser levantadas.

Em Singapura, Noruega, Espanha e, mais recentemente, no Reino Unido, a decisão de aliviar as medidas de contenção foi tomada a nível político e sem critérios públicos (muitas vezes com prazos anunciados antecipadamente) — como foi o caso português. No Japão, Alemanha, Coreia do Sul e, em alguns casos, no Reino Unido, a decisão foi tomada com base em critérios epidemiológicos públicos — como o número de novos casos diários por 100 mil habitantes.

“Como a experiência da Nova Zelândia mostra, aliviar as restrições é algo que pode ser feito com grande cuidado e vigilância continuada. Como mostra, neste momento, Espanha, Alemanha e o Reino Unido há um enorme potencial para o ressurgimento se não forem implementadas salvaguardas abrangentes”, avisam os autores.

1. Conhecimento sobre a situação epidemiológica

“Parece intuitivo que um país não deve retomar a atividade enquanto não tiver um sistema de vigilância de alta qualidade implementado e não tiver garantido que as infeções estão a ser suprimidas”, apontam os autores do estudo, lamentando que, “como é visível em vários países, este princípio tem sido frequentemente desprezado”.

No entender dos especialistas, este conhecimento deve ir mais além do que a simples construção de uma imagem da pandemia no país num determinado momento. É fundamental que haja informação de qualidade em tempo real para calcular o valor de reprodução do vírus — o “R” —, assegura o estudo, salientando como Hong Kong conseguiu, desde fevereiro, apresentar estimativas do “R” em tempo real.

O estudo lembra que países diferentes tiveram capacidades diferentes para estimar a situação epidemiológica em tempo real, o que influenciou a forma como lidaram com a pandemia. “Alguns locais na Ásia, como a Coreia do Sul, tiveram sistemas que funcionaram bem desde o início da pandemia e outros países, como a Alemanha, foram capazes de gerir os recursos, enquanto alguns países, como o Reino Unido e Espanha, tiveram dificuldades“, escrevem os autores.

2. Envolvimento da comunidade

O segundo pré-requisito apontado pelo estudo para a reabertura das sociedades é o envolvimento da comunidade nos esforços de contenção do vírus. “As comunidades devem estar completamente envolvidas na sua proteção do vírus e dos efeitos da crise, sobretudo as populações mais vulneráveis. Idealmente, as autoridades devem assegurar que entendem totalmente a realidade da situação vivida pelas pessoas afetadas pelas suas decisões, baseando-se em princípios de coprodução de políticas. A mensagem deve ser consistente e credível“, escrevem os autores do estudo.

Porém, a realidade na maioria dos lugares tem sido a oposta. Logo a começar, por exemplo, com a grande confusão sobre o que é uma distância de segurança. Em Hong Kong, Singapura e Noruega, a distância social recomendada é de um metro; na Alemanha e em Espanha, de 1,5 metros; no Japão e na Coreia do Sul, é de dois metros; e em Inglaterra a distância recomendada passou de dois para um metro em junho (mesmo mantendo-se nos dois metros para as outras nações britânicas). A Nova Zelândia adotou o sistema de “bolha” — segundo o qual é possível ter contacto físico próximo com um conjunto restrito de amigos e família, mas mantendo o distanciamento de segurança relativamente a outras pessoas fora da “bolha”.

O distanciamento físico é só um exemplo da falta de consenso internacional sobre as medidas a implementar na comunidade. Outro exemplo evidente é o do uso de máscaras — diferentes países adotaram abordagens muito diferentes, uns optando pela obrigatoriedade, outros pela recomendação, outros pela aplicação de medidas diferenciadas. E, em quase todos os casos, houve mudanças de discurso sobre a real eficácia da máscara no combate à pandemia.

3. Capacidade de resposta em saúde pública

Em terceiro lugar, os autores do estudo defendem que um país só está em condições de retomar a sua atividade quando tiver um sistema de vigilância eficaz na deteção dos casos, no rastreio dos contactos e no apoio durante o isolamento. A evolução da capacidade de testagem foi um dos maiores desafios enfrentados pela maioria dos países desde o início da pandemia — e os países que se anteciparam na inovação (como a Coreia do Sul e a Alemanha com os testes drive-through e o Reino Unido e Hong Kong com os testes em casa) conseguiram mais rapidamente aumentar a capacidade de testagem sem pressionar os hospitais.

Ao mesmo tempo, diferentes países têm tido experiências diferentes na relação entre a evidência científica e a decisão política. Alguns países, como Hong Kong, Nova Zelândia, Espanha e o Reino Unido, criaram comités de especialistas especificamente para a pandemia, o que em alguns casos — sobretudo no Reino Unido — se revelou menos eficaz do que o expectável. A falta de clareza sobre a relação entre aquele comité e o governo, aliada à demora em nomear os membros do organismo, não ajudou. Por outro lado, em países como a Alemanha, Singapura, Coreia do Sul e Noruega, a evidência científica foi produzida essencialmente por especialista já integrados em institutos de saúde pública que existiam antes da pandemia.

“As diferentes experiências levantam questões interessantes sobre o processo de tomada de decisão na incerteza. Pode a procura pela evidência de alta qualidade, em vez da aplicação do princípio da prevenção, adiar decisões importantes?”, questionam os autores do estudo.

4. Capacidade do sistema de saúde

Os especialistas indicam também que a capacidade do sistema de saúde — em termos de equipamentos, instalações e recursos humanos — é outro dos requisitos fundamentais para a retoma da atividade, e sublinham a importância da antecipação. “A experiência da Alemanha mostra os benefícios de investir no sistema de saúde para o futuro. Antes do surto de Covid-19, o país já tinha 34 camas de cuidados intensivos por 100 mil habitantes, contra 9,7 em Espanha e 5,2 no Japão“, lê-se no estudo.

Enquanto a Alemanha conseguiu manter as suas unidades de cuidados intensivos abaixo da ocupação máxima durante o pico da pandemia, muitos outros países europeus “tiveram de adaptar outras alas e espaços dentro dos hospitais para acomodar doentes graves com Covid-19“, além de terem também criado estruturas improvisadas nas comunidades para acolher doentes.

5. Controlo de fronteiras

Por fim, o estudo indica que a capacidade de prevenir a difusão do vírus entre países é um dos fatores cruciais para a retoma da normalidade possível. Os autores defendem que é necessária uma coerência nas regras definidas para as viagens internacionais, nomeadamente no que diz respeito aos períodos de quarentena e às verificações feitas aos passageiros.