A especialista em relações internacionais Mónica Dias está convencida de que a União Europeia não vai conseguir chegar a acordo com o Reino Unido até 31 de dezembro e que o processo “vai sobrar” para a presidência portuguesa.

Coordenadora do programa de doutoramento do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, Mónica Dias admite que o prazo para concluir um acordo sobre a relação futura entre Bruxelas e Londres “vai ser adiado, tal como foram adiados muitos outros prazos”, pelo menos até 31 de janeiro.

A União Europeia (UE) e o Reino Unido negoceiam atualmente os termos da relação entre ambos após o Brexit, que se efetivou a 31 de janeiro passado e está atualmente no chamado período de transição, que termina a 31 de dezembro.

Mas, depois de sucessivas rondas de negociações sem progressos visíveis e de o Governo de Boris Johnson ter apresentado uma proposta de lei que anula parcialmente o Acordo de Saída, o Conselho Europeu apelou na quinta-feira aos 27 que se preparem “para todo o tipo de cenários, incluindo o de ‘no-deal'”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“O Brexit creio que não vai ser resolvido por esta presidência [alemã] e, sim, vai sobrar para Portugal”, afirma Mónica Dias numa entrevista telefónica com a Lusa.

Prevejo que, tendo em conta as últimas decisões do governo britânico, haja muitos assuntos que não possam ser resolvidos de forma pacífica até ao final de dezembro, nomeadamente a questão da fronteira da Irlanda do Norte e da Irlanda, assunto [que] não é pacífico”.

Para a académica, e apesar de Boris Johnson ter recusado prolongar o período de transição, esse vai ser o desfecho provável, porque “uma saída abrupta” implica consequências económicas “muito graves” para ambas as partes.

“Boris Johnson diz muitas vezes coisas e depois desdiz. Aliás, repare, ele assina o acordo com a União Europeia, feito por ele, e meses depois apresenta uma lei a contradizer isso”, aponta, criticando a atitude do primeiro-ministro britânico como “um exemplo de político que descredibiliza a confiança que a população possa ter nos líderes políticos”.

Mónica Dias defende que se deve “olhar para além destes holofotes” e “deste palco em que se afirmam a força e as convicções em alto e bom som” e ter em conta o peso que os efeitos negativos de uma saída sem acordo terá na forma como a atual presidência do Conselho da UE, nas mãos da Alemanha, vai gerir processo.

Obviamente não sei fazer futurologia, mas diria que a União Europeia consegue sempre encontrar soluções e, tendo em conta a capacidade de [a chanceler alemã] Angela Merkel para negociar e conseguir compromissos e resultados pragmáticos, diria que provavelmente vai haver, em dezembro, depois de muitas horas de negociação, um período excecional de saída da Grã-Bretanha até 31 de janeiro. E vamos andando assim”.

A académica frisa que “o grande poder da Alemanha é ainda a dimensão económica” e considera que vai ser “esse argumento que Angela Merkel vai jogar”.

Atenção, o bem estar económico nos dois lados do Canal da Mancha é fundamental, é essa questão económica que vai permitir então um prolongamento do prazo. Porque repare, na verdade, com um prolongamento do prazo ninguém perde a face e podemos continuar a negociar”.

Mónica Dias frisa ainda que, “mesmo com a saída do Reino Unido da União Europeia, há muito mais que une o Reino Unido e os parceiros europeus do que aquilo que os divide”, citando a política de direitos humanos, a relação com a China, a sustentabilidade, as Nações Unidas, “tantos e tantos dossiers” em que “há unidade”.

A especialista considera, no entanto, não haver condições para que o processo tenha uma base de acordo bem definida quando começar a presidência portuguesa da UE, que se exerce entre 01 de janeiro e 30 de junho de 2021.

Acho que não. Temos tantos dossiers em cima da mesa relacionados com a pandemia, a situação não só de saúde mas também os graves problemas económicos que as populações estão a sentir na Europa, que me parece que não se vá avançar tanto neste dossier”.

“Neste momento nenhuma das partes, nem o próprio Boris Johnson, está interessado em conseguir uma solução martelada que depois lhe crie imensos problemas de política interna. Portanto, mais vale dizer, ‘vamos adiar’.

A académica evoca uma ideia defendida há alguns meses pelos respetivos governos de que o atual trio de presidências seria um “GPS”, partindo das iniciais, em inglês, dos três países que exercem a presidência da UE sucessivamente (Germany, Portugal, Slovenia), para ilustrar o processo do Brexit.

O GPS conduz-nos em segurança ao destino, mas temos por vezes que ter em conta que haja caminhos diferentes, outras vias que não estávamos a prever, que haja atrasos. E portanto a gente chegará lá, mas provavelmente só no final deste GPS”.

Alemanha quer deixar concluída questão do Estado de Direito na UE

Mónica Dias diz diz ainda que presidência alemã “quer deixar concluída” a questão do Estado de Direito, mas “não vai ser uma presidência” sozinha a conseguir esse “salto enorme da União Europeia”.

A especialista em relações internacionais sublinha que o Estado de Direito “é um tema que a maioria dos alemães querem ver resolvido e exigem de Angela Merkel mão firme”.

A Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e a presidência alemã defendem que os fundos europeus sejam condicionados ao cumprimento pelos Estados-membros dos princípios do Estado de Direito, mas a oposição de vários países tem impedido o lançamento do processo de ratificação nos parlamentos nacionais do Quadro Financeiro Plurianual (QFP), o orçamento da UE para 2021-2027, e o Fundo de Recuperação pós-pandemia.

Um tal condicionalismo é rejeitado pela Hungria e pela Polónia, ambos com procedimentos abertos por desrespeito daqueles princípios, assim como por países, como Portugal, para os quais o rápido desbloqueio dos fundos é muito importante e a questão deve ser separada dos fundos.

Do lado oposto, insistem na condicionalidade os chamados países “frugais” – Holanda, Áustria, Suécia e Dinamarca -, partidários de menos despesa europeia.

Acho que também Portugal vai estar empenhado nestas questões de Estado de Direito, mas acho que este é um ‘dossier’ que a Alemanha quer deixar concluído”.

Mónica Dias salienta a importância, para a Alemanha, do caso da Polónia, “país vizinho”, onde “há muitas pessoas que discordam e que se sentem fortemente ameaçadas pelas políticas do Governo” nacionalista e que tem muitos emigrantes na Alemanha.

Há uma influência grande e é um tema importante, talvez muito mais importante que a Hungria”.

A académica considera que, apesar da complexidade da questão, a “capacidade de negociação de Angela Merkel vai ser muito importante”, assim como o empenho, dada a experiência da chanceler alemã na mediação de “muitos conflitos que envolveram Estados da Europa Central e do Leste”, a importante comunidade na Alemanha de imigrantes da Europa Central, ou mesmo a presença em Berlim de “um dos mais importantes líderes da oposição russa” e “da líder da oposição da Bielorrússia”.

“Esse tema é vivido como nós aqui em Portugal nem sequer imaginamos, com uma enorme intensidade. É um tema que os alemães, a maioria dos alemães, quer ver resolvido e exige de Angela Merkel aqui mão firme”, explica, apontando ainda que Merkel “cresceu na antiga RDA”, a Alemanha comunista, “fala russo” e “sabe como é que é viver na Europa de Leste”.

Acho que ela é uma das líderes que tem provavelmente mais influência, pode mais influenciar pode ter mais cartas para negociar este ‘dossier’. E que é por essa razão que a Alemanha vai estar muito empenhada por conseguir aqui alcançar uma declaração, por exemplo”.

Mónica Dias admite que, em nome do consenso europeu, a ideia inicial tenha de ser diluída e assumir contornos mais facilmente aceitáveis por todos os 27.

“Certamente não vai ser uma presidência que vai conseguir resultados que refletem uma visão e um salto enorme da União Europeia, mas [Angela Merkel] vai conseguir assinar dossiers fundamentais, como este económico, que já são extraordinários, e através do seu ‘low profile’ e desta capacidade discreta e moderadora e conciliadora vai talvez conseguir também surpreender-nos com uma declaração de princípios nesse ‘dossier’ do Estado de Direito”, acredita a especialista em relações internacionais.

A presidência do Conselho da União Europeia é exercida rotativamente pelos países europeus por períodos de seis meses, agrupada em “trios” de três Estados-membros que as exercem consecutivamente e elaboram um programa conjunto.

O atual trio iniciou-se a 01 de julho com a Alemanha, que exerce a presidência até 31 de dezembro, seguindo-se Portugal, entre 01 de janeiro e 30 de junho de 2021, e a Eslovénia, entre 01 de julho e 31 de dezembro de 2021.