Houve duas entradas na sala de audiências particularmente esperadas esta terça-feira no julgamento do Football Leaks. Primeiro, a de Rui Pinto. É que a 14.ª sessão coincidiu com o 32.º aniversário do alegado hacker e, quando entrou na sala, houve advogados que não resistiram a dar-lhe os parabéns.
Depois, a de Jorge Jesus. Após várias tentativas de o notificar para depor em tribunal, o atual treinador do Benfica foi finalmente ouvido. Advogados, juízes, polícias e o próprio arguido estavam de olhos postos na porta — quase como se ainda não acreditassem que Jorge Jesus vinha mesmo. Mas veio e deu logo nas vistas. “Bom dia, bom dia, bom dia”, foi dizendo à medida acenava e se aproximava da cadeira onde se sentam as testemunhas. Lá chegado, pediu logo se podia tirar a máscara para falar — o que o tribunal aceitou.
A Procuradora da República Marta Viegas começou por lhe perguntar se, no tempo em que foi treinador do Sporting, lhe tinha sido atribuído algum email — é na verdade uma pergunta que a magistrada tem feito a todas as testemunhas cujos emails terão sido acedidos por Rui Pinto.
Não usava, nem tinha caixa de email. Não sei se o Sporting criou essa caixa. Não utilizei, nem no Sporting, nem no Benfica, nem em lado nenhum porque eu não uso os emails dos clubes”, respondeu Jesus, realçando que tem o seu email pessoal “como é normal”.
Seguiram-se as perguntas sobre o alegado ataque informático de Rui Pinto ao Sporting e o site que criou, o Football Leaks — que geraram alguma confusão na testemunha. “Estive dois anos fora de Portugal. Não me sei sintonizar”, lembrou Jorge Jesus para justificar a dificuldade em responder. A magistrada mostrou-se compreensiva e disse que sabia que o treinador tinha estado no Brasil. “E na Arábia Saudita”, completou a testemunha.
Jorge Jesus despreocupado com divulgação do seu contrato. “Não temes. Tens de pagar impostos como eu faço: mais de 50%”
A procuradora não desistiu e insistiu nas questões a Jorge Jesus. Perguntou-lhe se não tinha sequer ouvido falar do Football Leaks. “Nunca foi uma coisa que desse grande importância”, disse, admitindo mesmo que não sabia por que razão foi chamado para depor: “Nem sei por que é que estou aqui! É obrigatório estar aqui, é isso?” A juíza Margarida Alves apressou-se a explicar-lhe: estava ali porque foi arrolado como testemunha pelo Ministério Público, pela defesa e pelos assistentes. E porque, na tese da acusação, Rui Pinto terá acedido ao seu email e divulgado o contrato com o Sporting — algo que Jorge Jesus pareceu não valorizar:
Nunca me preocupou, não tenho nada a esconder, nem valorizei. Para mim, nunca criou instabilidade. Não estava ali nada que não fosse verdade. Não sei o que a divulgação causou ao Sporting, sou treinador de futebol”, afirmou.
Levado pelo discurso, Jorge Jesus acabaria até por começar a tratar a procuradora por tu. “Se é o teu contrato, não temes. Tens de pagar os impostos como eu faço: mais de 50%“, disse, causando olhares de estranheza entre as pessoas presentes na sala de audiência.
“Eu não falo português?”. Jorge Jesus ficou impaciente com algumas perguntas e foi repreendido pela juíza
Há um habitual rol de perguntas que a procuradora costuma fazer a todas as testemunhas cujos emails Rui Pinto terá acedido — questões que servem para provar que não foram os visados a fazer aqueles acessos — e Jorge Jesus não foi exceção. Por isso, mesmo depois de o treinador ter dito que não acedia ao email do Sporting, a magistrada teve de perguntar se alguma vez tinha acedido ao email na Hungria ou se autorizou Rui Pinto a fazê-lo. “Não leve a mal as minhas perguntas”, disse a procuradora, quase que antecipando a perplexidade de Jorge Jesus.
— Não, você é que está aí! — disse o treinador à procuradora.
— É senhora procuradora — alertou a juíza.
Faltava perguntar se Jorge Jesus alguma vez tinha estado na Hungria e se poderia ter acedido ao email naquele país. O treinador explicou que tinha viajado para lá há mais de 40 anos, quando ainda era jogador do Sporting. No entanto, a procuradora teve de garantir que a testemunha não tinha estado em Budapeste, especificamente em 2015, ano em que Rui Pinto teria entrado no seu email. E, por essa razão, fez novamente a mesma pergunta, mas em relação a 2015. A resposta não foi muito esclarecedora.
Eu não falo português? Já disse que só estive em Budapeste uma vez, aos 19 anos, quando fui lá jogar”, ripostou o treinador.
Menos de 20 minutos chegaram para o depoimento de Jorge Jesus. O antes de sair da sala, o atual treinador do Benfica quis saber quem era Rui Pinto. “É aquele menino ali?”, perguntou, sorrindo e apontando para o arguido sentado atrás de si — um momento que gerou mais gargalhadas na sala de audiências.
Covid-19 adia sessões do julgamento. Informático da PGR e familiar de senhorio de Rui Pinto em isolamento
Duas testemunhas arroladas no processo do Football Leaks estão em isolamento profilático devido à Covid-19: trata-se de José Luís Cristóvão, informático da Procuradoria-Geral da República (PGR), e Bálint Bozó, familiar dos senhorios de Rui Pinto, na Hungria, segundo o que é explicado na acusação. Assim, a sessão desta terça-feira terminou mais cedo e a sessão da manhã de quarta-feira foi cancelada.
Bálint Bozó deveria ser ouvido na tarde desta terça-feira, por videoconferência, já que se encontra na Hungria. Mas segundo explicou a presidente do coletivo de juízes, Margarida Alves, a testemunha está em confinamento com a mãe num local longe de Budapeste, sem acesso à internet. Já o informático da PGR deveria ser ouvido presencialmente na manhã de quarta-feira, mas também se encontra em isolamento profilático. Assim, o julgamento continua amanhã, 21 de outubro, às 14h00 com a audição do ex-diretor do DCIAP, Amadeu Guerra.
Football Leaks? “Isso tem a ver com o Rui Pinto?”. “Nós achamos que sim”, respondeu a procuradora
Apesar de alguns adiamentos, esta terça-feira foram ouvidas outras quartos testemunhas relacionadas com o Sporting que prestaram esclarecimentos relacionados com a utilização que faziam dos emails alegadamente acedidos por Rui Pinto. Ainda na sessão da manhã, o ex-vogal da direção do Sporting Alexandre Godinho considerou que, além das “questões de concorrência”, “não houve problema” para o clube com a divulgação de alguns documentos no Football Leaks. Também o técnico de marketing do Sporting, Tiago Vieira, foi ouvido por videoconferência.
À tarde foram ouvidos o ex-treinador do Sporting Tiago Fernandes e o seu pai, Manuel Fernandes, que esteve no Sporting entre 1975 e 2018 e que é atualmente comentador desportivo. Este último admitiu que sabia “mais ou menos” o que era o Football Leaks, mas quis garantir:
— Isso tem a ver com o Rui Pinto?
— Nós achamos que sim! — respondeu a procuradora.
Manuel Fernandes explicou depois que “aquilo” que lhe disseram “foi que o Rui Pinto” tinha entrado no seu computador. Mas adiantou: “Eu lido muito mal com informática”. “Fizeram-me a pergunta se eu queria processá-lo e eu disse que não, não tenho nada a esconder“, rematou.
O julgamento já dura há quase dois meses. Na sessão passada, Rui Pinto viu ser-lhe retirada uma queixa: Bruno de Carvalho decidiu desistir e anunciou-o durante o seu depoimento. O ex-presidente do Sporting deixou vários elogios ao alegado hacker e disse que o Football Leaks “até deu jeito”.
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.