Quando, em finais de agosto de 2017, telefonou a João Paulino para saber mais informações de um tal de Paulo Lemos, mais conhecido por “Fechaduras”, Bruno Ataíde desconhecia que o seu amigo de infância era ele próprio o autor do assalto a Tancos. E mesmo depois de ter mantido com ele uma mão cheia de encontros para perceber o que sabia do crime e, depois, ele lhe indicar onde estavam as armas furtadas nos Paióis Nacionais de Tancos, o militar da GNR nunca suspeitou do que viria a acontecer meses depois — em que ele próprio acabou detido e ficou com a vida “virada de pernas para o ar”, como descreveu esta quinta-feira no Tribunal de Santarém.

Bruno Ataíde trabalhava no Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé quando o seu chefe, o sargento Lima Santos, lhe transmitiu que a Polícia Judiciária Militar (PJM) precisava de uma ajuda deles para saber informações sobre um tal de Fechaduras. Ataíde até já tinha ouvido falar dele, e pelas ligações que tinha em Albufeira, sabia mesmo que ele vivia com alguém com um amigo comum a ele: com João Paulino. Um amigo de sempre, por intermédio das mães de ambos, mas que seguiu um caminho diferente dele.

Sempre com um discurso claro e a contraditar a acusação do Ministério Público, que o acusa a ele e a 22 arguidos no caso Tancos, o guarda explicou que acabou por telefonar ao amigo Paulino a perguntar-lhe mais informações sobre aquele suspeito. Sabia à data que a investigação se prendia com o assalto em Tancos, ocorrido dois meses antes. E pouco mais.

Ataíde soube assim que Fechaduras teria um passeio de barco, e acabou a ser ele e o colega a monitorizarem-no à distância, porque os militares da PJM não chegaram a tempo de o fazer. “Essas diligências ficaram em expediente?”, perguntou-lhe o juiz presidente. O militar respondeu que não, mas que é normal acontecer.

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“Não estou a discutir se é a forma mais correta de trabalhar, mas isso é usual. Nós apuramos informação durante a alguns dias, às vezes fora da nossa área, só para saber se depois os outros Órgãos de Polícia Criminal vêm cá. É tudo informal, mas autorizado”, afirmou.

Depois disso acabou a reunir-se com a PJM no Algarve Shopping, ele, o colega, o sargento Lima Santos e os majores da PJM Pinto da Costa e Brazão. O juiz ainda estranhou um encontro destes neste local, dada a sensibilidade do caso. Mas mais uma vez o militar disse ser prática habitual entre o pessoal da investigação criminal.

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Paulino afirma que disse que tinha assaltado, Ataíde garante que não

Depois deste encontro, prosseguiu o guarda, foi Paulino quem contactou com ele para se encontrarem. Encontraram-se ambos em Albufeira, num parque infantil perto da casa de Ataíde. “Ele vem com a sede de perceber o porquê da minha pergunta sobre o Fechaduras. Eu fiz o contrário: tu é que tens que explicar porque é que vens de Ansião falar comigo sobre o Fechaduras”, recordou, lembrando-o que “eram coisas” do seu trabalho. Neste encontro que se estendeu noite dentro, João Paulino disparou sempre “as baterias” contra Fechaduras, apontando-o como o homem que devia ser detido pela polícia.

“Por favor não faças perguntas, o Fechaduras está envolvido, o Fechaduras abriu os paióis de Tancos”, terá dito João Paulino a Bruno Ataíde.

Seguiram-se, depois, vários encontros na zona de Pombal, que o militar foi descrevendo. Garantiu sempre que o arguido Paulino “nunca” lhe disse que tinha participado no assalto. “Nem nunca me disse: eu não quero ser preso”, afirmou, contrariando o que Paulino disse no deu depoimento e mostrando a divisão entre as defesas.

Os dois lados da defesa: um informador ou um criminoso?

É que se o processo tem de um lado os advogados que representam os militares da PJM e da GNR, e o próprio ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, do outro tem os advogados que representam os acusados do assalto. E se para os primeiros a estratégia tem sido que Paulino era um informador com quem estavam a trabalhar, para o segundos o plano passa por convencer o tribunal que eles sabiam que Paulino estava envolvido no crime, mas que lhe prometeram proteção para que ele dissesse onde escondeu as armas.

Há, no entanto, uma prova no processo que pode melindrar a estratégia dos militares. É que a queixa feita em março por Paulo Lemos, ou Fechaduras, à PJ de que iria haver um assalto a instalações militares trazia um nome do cérebro do crime: o de João Paulino. E a informação dessa queixa, apesar de ter sido chutada para três tribunais diferentes e depois não ter sido investigada, foi fornecida ao major Pinto da Costa, da PJM, logo após o assalto a Tancos.

Carlos Melo Alves, advogado de Paulino, puxou desta carta quando chegou a sua vez de fazer perguntas a Ataíde.

Não recebeu nenhuma informação de que João Paulino estava ser investigado?

Não, respondeu-lhe o arguido.

Na sua tese ele era um informador, quando do outro lado [PJM] sabem que ele era o principal suspeito…, insistiu o advogado

Essa informação foi dada à PJ do Porto e não à PJ Militar

Isso é o que vamos ver, respondeu Melo Alves

Ataíde contou que, nesses encontros, Paulino disse sempre estar com medo e que chegou a sentir que ele seria muito próximo do autor do crime. Em cada um desses encontros ele, e depois Lima Santos que também se juntou aos dois, estavam juntos num carro fornecido pela PJM e desligavam sempre os telemóveis para lhe dar confiança.

Dia 3 de Tancos. João Paulino diz que lhe disseram que ministro da Defesa sabia da negociação

Paulino chegou a dizer que o armamento estaria escondido numa casa perto da barragem de Castelo de Bode, que teria alarme e que pertencia a alguém que vivia no estrangeiro e só regressava no natal. A GNR e a PJM chegaram a fazer um levantamento das casas ali existentes e a bater a zona num carro com uma faixa de uma empresa de segurança para não levantarem suspeitas. Mas nada.

Nesses encontros, disse o militar, Paulino a certa altura chegou a recuar nas informações “Não tens nada a ver com isso, mas tens que me explicar como soubeste essa informação. Não é por tu não falares mais, que isto acaba aqui. Tu estás a falar com um polícia neste momento. Isto não vai parar”, recordou. Mais uma vez contrariando Paulino disse que lhe disse que o ministro da Defesa de então, Azeredo Lopes, estava a par da investigação, embora não da negociação.

Só depois de vários encontros em que Paulino chegou a recuar, e que recusou sempre serem com a PJM presente, é que ele disse onde estavam as armas. Ataíde recusa que tivessem combinado como é que ele as tirou da casa da avó, em Penela, onde as escondera, e as colocou na Chamusca. Afirmando que só mais tarde soube do seu verdadeiro envolvimento.

Como um ex-fuzileiro planeou o assalto a Tancos. E se arrependeu de seguida

O militar recusou que tenha havido qualquer “pacto de silêncio” entre os militares da PJM e da GNR em relação à investigação, porque isso até seria “impensável” dada a hierarquia e as diferentes patentes que se sentam no banco dos réus. “Nunca me foi dada uma ordem que parecesse ilegal. E cumpri ordens que sempre achei que eram legais”, sustentou, lembrando que sempre lhe disseram que o importante era recuperar as armas, mas nunca “a qualquer custo”, como diz a acusação do Ministério Público.

Major Brazão pede dez dias ao juiz para ser ouvido em tribunal

O tribunal de Santarém tinha marcado para esta quinta-feira a sua audição, mas na última sessão — a de segunda-feira — o militar lembrou que para a sua defesa falta uma prova essencial: o disco rígido que a PJ lhe apreendeu com o computador e que ainda não lhe foi devolvido. O seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, considera-a fundamental.

No início da sessão o tribunal anunciou que o tal disco externo já tinha chegado, mas que tinha um requerimento da defesa de Brazão a pedir 10 dias para o analisar. O juiz ainda sugeriu ao arguido que começasse já a falar, sem prejuízo de analisar aquela prova. Mas a defesa recusou, argumentando que estava à espera do disco desde a fase de inquérito do processo e que tinha mesmo que perceber o que lá está.

O major Brazão diz que as provas que constam no disco rígido são fundamentais para a sua defesa

Brazão é um dos 23 arguidos acusados pelo Ministério Público do caso Tancos e é o primeiro do grupo de militares da PJM e da GNR, onde também se pode incluir o ex-ministro da Defesa, que estão acusados de terem investigado o paradeiro das armas de guerra furtadas sem partilhar essa informação com a PJ civil — a quem foi atribuída a coordenação da investigação. É acusado de cinco crimes: associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e ou contrafação de documento, denegação de justiça e prevaricação, favorecimento pessoal por funcionário.

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Depois do depoimento de João Paulino, acusado pelo Ministério Público de ser o cérebro do assalto — e que ilibou quase todos os acusados pelo assalto que sentam ao seu lado no banco dos réus — na sessão anterior foram ouvidos os restantes arguidos envolvidos no furto. A partir desta sessão, que será a quinta, o coletivo de juízes vai focar-se na investigação e na operação que culminou na recuperação das armas num descampado na Chamusca.

Paulino disse que essa entrega foi negociada com dois militares da GNR que reuniam com frequência com a PJM e que essa negociação era conhecida ao mais alto nível. Disseram-lhe mesmo que o ministro da Defesa, Azeredo Lopes, estaria a par de tudo.

O ex-ministro da Defesa é, porém, o último arguido da lista a falar. Só depois serão ouvidas as testemunhas.

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