Os advogados de Rui Pinto estiveram longas horas a fazer perguntas a Nélio Lucas, ex-administrador da Doyen. Era a terceira sessão do julgamento do Football Leaks (das 26 que já leva) em que está a prestar depoimento como testemunha. Francisco Teixeira da Mota quis passar a pente fino vários documentos relacionados com a origem do dinheiro da Doyen e com os investimentos feitos pela empresa. Mas uma boa parte das respostas não foi esclarecedora: “Não me recordo”, “não lhe sei dizer” ou “não faço ideia”. Cá fora, em declarações ao jornalistas, o advogado admitiu, em tom de brincadeira, que talvez Nélio Lucas estivesse com “um problema de memória”.
Questionado sobre se Retif Arif, tio de Malik Ali (ex-sócio da Doyen e um dos membros da família Arif, que fez fortuna no Cazaquistão e Turquia), financiou a Doyen através do seu sobrinho, Nélio Lucas disse não fazer “a mínima ideia”. Depois de Teixeira da Mota mostrar documentos com os investimentos da Doyen em que constava várias vezes a sigla RA, Nélio Lucas não soube “precisar” que sigla era aquela e se era da sua autoria, apesar de admitir que aquele era um documento interno da Doyen. A testemunha também não se recordou de um empréstimo de 1,5 milhões da Doyen ao FCP.
Não me recordo desse empréstimo. Por acaso não sei precisar, se não responderia. Estou sempre disponível como sabe”, disse, suscitando em Rui Pinto uma gargalhada.
O facto de o clube Twente, financiado pela Doyen, ter sido sancionado pelas autoridades holandesas? “Não me recordo”. Nas várias horas em que esteve a ser inquirido, Nélio Lucas só acabaria por confirmar a ligação do filho de Pinto da Costa à Doyen: que a empresa de Alexandre Pinto da Costa recebeu 700 mil euros pela transferência de Casemiro para o Real Madrid. “É verdade. Era o parceiro da empresa em Portugal”, afirmou Nélio Lucas.
Documentos revelados pelo site Football Leaks em 2016 mostravam que o FCP tinha pago uma comissão de 1,26 milhões de euros à Vela Management, empresa ligada a Nélio Lucas, que acabou por entregar 700 mil euros à Energy Soccer, de Alexandre Pinto da Costa — um negócio que Nélio Lucas acabou por confirmar esta terça-feira em tribunal.
Defesa da Doyen tentou travar inquirição a Nélio Lucas: “A Constituição ainda é a lei acima de Rui Pinto”. Mas não conseguiu
Quando a sessão arrancou, o advogado Francisco Teixeira da Mota ainda só tinha feito uma ou duas perguntas sobre a Vela Management Limited, e foi interrompido pela advogada Sofia Ribeiro Branco, que representa a Doyen:
— Já percebi a linha do interrogatório…
— Já percebeu mais do que eu — responde-lhe Teixeira da Mota
A advogada da Doyen argumentou então que “foram colocadas questões que nada têm a ver com o processo”. “Permitir o escrutínio dos ofendidos com sucessivas questões sobre a sua vida pessoal, empresarial e profissional, é agravar as consequências do crime perpetuado pelo arguido”, defendeu, chegando mesmo a afirmar que uma inquirição nestes termos “viola o artigo segundo da Constituição“. “Os ofendidos não têm de ser expor desnecessariamente”, considerou. Sofia Ribeiro Branco entende que o escrutínio de Nélio Lucas não pode ser justificado com a necessidade da defesa de expor a motivação do arguido para os crimes de que está acusado. E por isso pediu ao tribunal que “não admita questões que incidam sobre o escrutínio dos ofendidos”.
Não quis prestar declarações, está no seu direito, não quis o próprio falar da motivação que só ele pode falar. Mas não falou. Não pode é dizer-se que tudo justifica a alegação da motivação”, disse.
Por sua vez, a defesa de Rui Pinto lembrou que este é “um processo complexo, que trata problemas relevantes da sociedade portuguesa e mundial” e que “não pode ser entendido como um mero processo de acesso ilegítimo”. Franciso de Teixeira da Mota entendeu que a sua pergunta sobre a Vela Management Limited era “inocente”, mas “importante porque entra em negócios denunciados pelo Football Leaks. “A defesa de um arguido não pode ser saciada pela acusação que não pretende ver questões esclarecidas”, afirmou.
A advogada da Doyen voltou ao ataque para fazer um novo requerimento que, desta vez pedia ao tribunal que a testemunha Nélio Lucas não seja confrontada com documentos obtidos ilegitimamente pelo arguido. “A Constituição ainda é a lei que está acima de Rui Pinto”, afirmou, alegando que ” a defesa não pode ter o direito de escrutinar os ofendidos”.
É como se, num assalto a uma casa, perguntassem se a jarra roubada foi comprada com o dinheiro de quem, e quem comprou, se tinha uma sociedade”, comparou a advogada.
Em resposta, a defesa de Rui Pinto disse “lamentar a posição assumida pela assistente” que “visa pôr em causa a defesa do arguido”. “O que se pretende é impedir o arguido de utilizar essa prova para analisar, discutir”, argumentou.
Durante quase uma hora o julgamento do caso Football Leaks esteve em stand-by porque os juízes estiveram reunidos para poder decidir. E decidiram a favor da defesa de Rui Pinto: o tribunal considerou que não se registava “nenhuma nulidade ou irregularidade” das questões de Teixiera da Mota, invocando a necessidade de “garantir o princípio do contraditório” à defesa. A advogada Sofia Ribeiro Branco ainda alegou a “irregularidade” da decisão, mas o tribunal manteve o despacho, sem lhe dar razão.
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.