O discurso religioso é não é estranho à esfera política norte-americana.

São raros os discursos presidenciais que não terminam com a expressão “God bless the USA” [“Que Deus abençoe os EUA”]; os juramentos públicos são frequentemente feitos sobre a Bíblia em vez da Constituição e terminam quase sempre com as palavras “So help me God” [“Que Deus me ajude”]; as celebrações religiosas são habituais no protocolo presidencial — e os presidentes norte-americanos, republicanos ou democratas, estão sempre prontos a falar de Deus.

Joe Biden é o segundo Presidente católico, num país em que o Cristianismo está em maioria (70,6% da população), mas é representado essencialmente por protestantes. Os católicos representam atualmente 20,8% da população norte-americana. Antes de Biden, John F. Kennedy era o único católico na lista de presidentes norte-americanos, composta quase exclusivamente por cristãos protestantes, oriundos de diversas denominações.

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Biden não o esconde. Durante a campanha, referiu-se múltiplas vezes à sua fé católica, recorrendo frequentemente a citações do Papa Francisco. No discurso inaugural, citou Santo Agostinho. Quando redecorou a Sala Oval, incluiu uma fotografia em que surge ao lado do Papa. E, ainda assim, Biden está longe de ter uma relação pacífica com o eleitorado católico — sobretudo com os mais tradicionalistas, que Trump conseguiu atrair com políticas conservadoras no que toca aos costumes (por exemplo, posicionando-se duramente contra o aborto) e, mais recentemente, com a nomeação de uma juíza católica conservadora, Amy Coney Barrett, para o Supremo Tribunal dos EUA, a poucos dias da eleição que Biden viria a ganhar.

O democrata, por seu turno, embora comungue da maioria das visões sociais da Igreja Católica e seja próximo do Papa Francisco em temas como a imigração ou a resposta a dar às crises que marcam o mundo contemporâneo, tem um espinho na sua relação com os católicos mais conservadores: defende o direito ao aborto e promete transformar o Roe v. Wade — célebre processo judicial de 1973 cuja jurisprudência é atualmente a proteção legal do aborto nos EUA — em lei.

Com as nomeações que fez para o Supremo, Trump pretendia, pelo contrário, reverter essa jurisprudência.

A defesa do aborto tem dificultado a relação entre Joe Biden e a sua própria Igreja. No final de 2019, durante a campanha para as primárias democratas, um padre católico proibiu Biden de comungar durante uma missa no estado da Carolina do Sul, alegando que o democrata não se encontrava em comunhão com a Igreja Católica: “Qualquer pessoa que defenda o aborto coloca-se fora dos ensinamentos da Igreja”.

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Ao longo dos anos, a questão do aborto tornou-se num dos assuntos mais fraturantes da política norte-americana, opondo radicalmente democratas e republicanos e ocupando uma parte muito significativa do debate público. Para uma parte considerável dos eleitores conservadores, trata-se de um tema tão central que pode definir, sozinho, o sentido de voto. Numa entrevista recente ao Observador, o biógrafo do Papa Francisco, Austen Ivereigh, definiu o fenómeno como uma “política baseada na guerra cultural, que tenta transformar um único assunto, neste caso o aborto, no único tema, sendo que tudo o resto é relativo a ele” — e salientou que o Papa Francisco é “muito crítico” desta forma de fazer política.

No discurso inaugural que fez esta quarta-feira, Joe Biden insistiu numa palavra acima de todas as outras: “Unidade”. Todavia, o seu mandato começou precisamente com o oposto da unidade pretendida — e logo dentro da própria Igreja Católica.

Ainda na quarta-feira, a Conferência Episcopal dos EUA publicou um extenso comunicado congratulando Biden pela tomada de posse. Mas apesar da simpatia das primeiras linhas, é possível descortinar no comunicado um tom bastante crítico de Biden ao longo do texto, em que a palavra “aborto” aparece oito vezes — o dobro das referências aos pobres e à pobreza, prioridades do Papa Francisco. Já a luta contra a pena de morte é referida apenas duas vezes.

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“Devo assinalar que o nosso novo Presidente prometeu seguir certas políticas que vão fazer avançar males morais e ameaçar a vida e a dignidade humanas, mais gravemente nas áreas do aborto, da contraceção, do casamento e do género”, lê-se no comunicado assinado pelo arcebispo de Los Angeles, José Horacio Gómez, atual presidente da instituição.

Gómez reconhece que o aborto é a “prioridade proeminente” dos bispos norte-americanos, embora acrescentando que “proeminente não significa a única”.

“Temos profundas preocupações relativas a muitas ameaças à vida humana e à dignidade da nossa sociedade. Mas, como o Papa Francisco ensina, não podemos ficar em silêncio quando perto de um milhão de vidas por nascer são postas de lado no nosso país todos os anos”, lê-se na nota.

O comunicado gerou discórdia dentro da própria Igreja Católica.

Logo na quarta-feira, o cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago e um dos mais influentes líderes católicos dos EUA, insurgiu-se contra o texto, que classificou como “irrefletido”, “crítico do Presidente Biden” e “uma surpresa para muitos bispos”.

“Hoje, a Conferência Episcopal dos EUA publicou um comunicado irrefletido sobre a tomada de posse do Presidente Biden. Além do facto de, aparentemente, não haver qualquer precedente para o fazer, o comunicado, crítico do Presidente Biden, foi uma surpresa para muitos bispos, que o receberam apenas algumas horas antes de ele ser divulgado”, escreveu Cupich no Twitter.

“O comunicado foi escrito sem o envolvimento do comité administrativo, uma consulta colegial que é o processo habitual para os comunicados que representam e merecem o apoio considerado dos bispos americanos”, continuou o cardeal de Chicago. “As falhas institucionais envolvidas devem ser corrigidas, e eu estou disponível para contribuir para os esforços nesse sentido, para que, inspirados pelo Evangelho, possamos construir a unidade da Igreja, e juntos trabalhar para curar a nossa nação neste momento de crise.”

A tomada de posse de Joe Biden foi saudada, de modo individual, por vários outros bispos norte-americanos, com mensagens discretas e, na maioria, sem referências a assuntos fraturantes, como o aborto ou a eutanásia. Contudo, a promessa de Biden de assegurar a união entre progressistas e conservadores parece agora mais difícil de cumprir entre as diferentes sensibilidades religiosas do país.

Por seu turno, o Papa Francisco enviou uma mensagem a Biden, pedindo que “o povo americano continue a ir buscar força aos elevados valores políticos, éticos e religiosos que inspiraram o país desde a fundação”. Na carta, o Papa destaca os desafios impostos pelas “graves crises que a família humana enfrenta” no momento atual da história, mas absteve-se de qualquer referência a questões como o aborto ou a eutanásia.