Uma fica em silêncio — para já. Outra quer falar em tribunal, mas com condição de a companheira sair da sala de audiências. Mariana Fonseca, a enfermeira de 24 anos acusada de matar e desmembrar um jovem de 21 anos, em março do ano passado, no Algarve, informou as três juízas que quer prestar declarações no julgamento, que decorrer no Tribunal de Portimão, e esteve a ser ouvida durante quase três horas.

Quero pedir perdão por todos os atos. Se pudesse voltar atrás, teria feito muitas cosias diferente. Não estava a pensar com razão. Fui movida pela emoção. Não sou culpada da morte”, começou por dizer.

Mariana Fonseca garante que “não havia plano” para matar ninguém e explica que “soube no momento” que estava com a namorada no carro e que “houve a mudança de trajeto” que se dirigiam à casa de Diogo Gonçalves. Ao tribunal, disse que Maria lhe explicou que ia a casa do jovem para ele lhe pôr umas colunas no carro e, lá chegadas, entrou na casa, mas pediu a Mariana para ficar no carro. Só três horas depois é que Maria saiu e chamou a companheira. “Acenou-me para sair. Pareceu-me que estava aflita e disse que precisava da minha ajuda. Entrei na moradia. Disse-me para esperar e, quando entrei, ele [Diogo Gonçalves] estava inconsciente no chão. Estava em cima de uma cadeira partida, amarrado com abraçadeiras”, relata.

Mariana explica que reanimou o jovem e, quando ele ficou consciente, empurrou-a “com força”. “Fui projetada para trás. A Maria disse-me: ‘Sai daqui’. E eu saí. Fui para o quarto da frente. Não perguntei o que se estava a passar. Não tive reação, estava assustada, o que raio era aquilo?”, explica, acrescentando que perante a insistência da namorada, não saiu do quarto.

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Não assisti a nada. Só ouvi. Ouvi sons de coisas a arrastar, da cadeira a partir. Quando os sons terminaram, ela veio ter comigo e perguntou-me se estava bem. Estava assustada e fui em direção da sala: ele estava a ficar pálido, cheio de marcas no pescoço“, contou.

A arguida explica que a companheira lhe pediu para a ajudar a limpar a casa — o que fez —, mas antes embrulhou a vítima num cobertor e levou o corpo para a casa de banho. “Ela disse-me: ‘Pelo menos, ajuda-me a limpar isso. Fui eu que fiz tudo, não tens culpa de nada, eu vou assumir isso’”, relata.. Mariana adianta que Maria “começou a ficar preocupada” porque Diogo Gonçalves começou a receber mensagens. Nesse momento, a segurança terá trazido de novo o cadáver para a sala, que “embrulhou em sacos de plástico”. “Cortou-lhe os dedos. Vi. Mas se disser que não conseguia ter ração para fazer nada? Não consegui fazer nada”, conta, admitindo depois que até pode ter perguntado o que estava a fazer, mas não se lembra.

Mais tarde, conta, a namorada terá escondido o corpo no carro. “Eu disse que não conseguia [fazê-lo]. Ela disse para deixar estar. Eu fui para a rua, ela foi buscar o Diogo, com uma cadeira que estava na secretária e transportou o corpo até à bagageira. Eu fiquei quieta a olhar — o que já é suficiente para ser uma atitude horrível“, disse.

Mariana continua a explicar que nesse dia, foram para casa. Lá, tentou perguntar à companheira o que se tinha passado, mas “ela não quis dizer”. “Não é da tua conta”, terá dito. Depois de terem ido, as duas, deitar ao lixo as roupas de Diogo Gonçalves e, nesse momento, foram feitos dois levantamentos da conta do jovem. “Foi nessa noite que ela me disse que tinha muito dinheiro na conta e que tinha recebido uma indemnização”, conta.

Mariana diz que foi “atacada” durante a noite pela namorada. E garante que não a viu a desmembrar o amigo

A jovem pede à juiza para contar um episódio que aconteceu durante a noite e que descreve como “relevante”. Mariana explicar que a namorada “enrolou charros” porque não conseguiam dormir e “só depois” é que dormiram. Durante a noite, na cama, foi “atacada”:

— A meio da noite ela pôs os braços e pernas à sua volta — conta Mariana.

— O que isso tem de anormal? Não eram um casal? — perguntou a juíza Antonienta Nascimento.

— Não quando os braços apertam o pescoço — respondeu a arguida.

Mariana disse que questionou a namorada sobre a namorada e adianta que, na altura, pensou que a estava a matar por saber demais. “Perguntei: ‘O que é isto?’. E pensei: ‘Sei demais. Olha, vou morrer’”, disse, adiantando que depois Maria lhe explicou q estava a ter um pesadelo. “Que raio de pesadelo. Eu fiquei assustada, para mim foi importante meritíssima”, comentou.

A arguida garantiu às juízas que “não estava presente”, nem sabe “onde foi feito” o desmembramento do cadáver. “Não queria ver o Diogo”, justificou. Questionada pela juíza sobre se sabia o que a companheira estaria a fazer, disse: “Sabia, de certa forma, mas achei que ela não era capaz. Disse-me que tinha que escondê-lo”. Mariana explicou ainda que a namorada “não chegou a dizer se o tinha feito ou não”. “Sabia que o corpo estava no carro, não sabia em que estado estava. A Maria disse que se queria livrar do carro, queria livrar-se do corpo”, adiantou.

Mariana explica que acompanhou, num carro separado, a namorada a várias localidades onde acabaria por deixar sacos com partes do corpo. Isto porque “ela estava muito sonolenta” uma vez que “tinha fumado muitos charros”. “A Maria retirou o corpo do carro, arrastou e atirou. Saí do carro e fiquei a olhar para ela. Sabia que ela tinha partes do corpo do Diogo”, explicando adiantando que não sabia que partes eram essas. “Só queria que isto acabasse. Não estava em mim. Só a acompanhei. Só a segui”, explica.

A enfermeira confirmou que, ao longo desses dias, foram feios vários levantamentos da conta de Diogo Gonçalves, bem como transferências via MB Way  — algumas para a sua conta bancária. Alguns dos levantamentos, admite, foram feitos por ela e entregou depois o dinheiro a Maria Malveiro.

Maria Malveiro não quer prestar declarações e foi obrigada a sair da sala de audiências

Já Maria Malveiro não quer falar — pode, no entanto, fazê-lo a qualquer momento do julgamento. São notórios os sinais de nervosismo na segurança de 20 anos que, ainda a sessão não tinha começado, e já estava em lágrimas — contrastando assim com a enfermeira aparentemente mais calma.

O advogado de Mariana Fonseca, João Grade dos Santos, pediu que a outra arguida, Maria Malveiro, saia da sala enquanto a jovem está a prestar declarações porque “não se sente à vontade”— o que o tribunal aceitou.

A sessão estava inicialmente marcada para as 9h15, mas só começou mais de uma hora devido a atrasos a sentar as pessoas que estão a assistir ao julgamento, segundo explicou a juíza presidente do coletivo, Antonieta Nascimento. Já depois de começar, o tribunal esteve a decidir sobre dois requerimentos da advogada Tânia Reis, que representa Maria Malveiro: um deles pedia a presença, a seu lado, do consultar forense João de Sousa, mas foi indeferido pelas juízas Antonieta Nascimento, Patrícia Ávila e Maria Stella Chan.

Inspetor da PJ diz que não foram recolhidos vestígios na garagem onde jovem terá sido desmembrado

A primeira testemunha ouvida foi Rui Nunes, inspetor da PJ que esteve envolvido na investigação do caso. Ao tribunal explicou que ambas as arguidas “beneficiaram com as transferências” feitas da conta de Diogo Gonçalves para as suas.

O inspetor deste órgão de polícia criminal admitiu, questionado pelo advogado João Grade dos Santos, que não foram recolhidos vestígios hemáticos na garagem onde a vítima terá sido desmembrada. “Só diz que aconteceu alguma coisa na garagem porque as arguidas lhe disseram?”, questionou o advogado. O inspetor acabou por confirmar que essa conclusão foi retirada “na sequência do que foi dito pelas duas arguidas”.

Móbil do crime será uma indemnização de 70 mil euros que vítima recebera pela morte da mãe

Mariana Fonseca e Maria Malveiro foram acusadas no final de setembro do ano passado pelo Ministério Público (MP) da morte de um homem de 21 anos, Diogo Gonçalves, com o objetivo de ficarem com o dinheiro que tinha recebido — mais de 70 mil euros de uma indemnização pela morte da mãe, atropelada na zona de Albufeira, em 2016.

As alegadas homicidas e a vítima eram amigos desde novembro de 2019 — o crime viria a acontecer quatro meses depois. De acordo com a acusação a que o Observador teve acesso, Maria Malveiro terá ficado a saber em fevereiro de 2020 que Diogo Gonçalves ia receber a tal indemnização e contou à sua companheira. Nos meses de fevereiro e março terão delineado um plano para “tirar a vida” ao jovem de 21 anos de forma a “apoderarem-se do património”.

No dia 20 de março, as duas ter-se-ão deslocado à casa do jovem, no concelho de Silves,  para casa de uma delas, onde o mantiveram sequestrado durante dois ou três dias. Lá chegadas, a arguida Maria Malveiro terá dado disfarçadamente fármacos para Diogo Gonçalves adormecer. Depois, terá seduzido o jovem, convencendo-o a sentar-se numa cadeira e fechar os olhos enquanto lhe prendia as mãos. Segundo a acusação, apertou-lhe o pescoço, utilizando uma manobra conhecia como mata-leão.

Homicídio no Algarve. Tribunal não permite que tia da vítima se constitua assistente

O jovem acabou por conseguir soltar-se e acabou por cair no chão. Maria Malveiro terá aproveitado para se colocar em cima dele e apertar-lhe novamente o pescoço até ficar inconsciente. A acusação descreve que, depois disso, a enfermeira Mariana Fonseca realizou manobras de reanimação e Diogo Gonçalves acabou por acordar. Já consciente, o jovem deu uma pancada a Mariana Fonseca para “se defender”, mas Maria Malveiro “colocou-se novamente sobre o corpo” dele, “voltou a apertar-lhe o pescoço” e o jovem “voltou a ficar inconsciente”.

Segundo o MP, Maria e Mariana transportaram o cadáver da vítima “no seu próprio carro até casa das arguidas, situada na zona de Lagos”, segundo o MP. Depois, deixaram o carro estacionado nas imediações do prédio onde viviam, com o cadáver na bagageira, e foram dormir. No dia seguinte, 21 de março, as suspeitas terão cortado e desmembrado “o cadáver da vítima”, guardando-o “em vários sacos de lixo”, que, nos dias seguintes, “atiraram por uma arriba, em Sagres, e esconderam na vegetação, em Tavira”. Durante estes dias, as arguidas terão feito levantamentos e pagamentos com o cartão e com o telemóvel da vítima.

Suspeitas de terem matado e esquartejado jovem no Algarve vão a julgamento

O advogado de defesa da enfermeira, Mariana Fonseca, pediu a abertura da instrução — uma fase que serve para decidir se o caso prossegue para julgamento —, mas o juiz entendeu levar as suspeitas a julgamento. Agora, as duas mulheres vão responder pelos crimes de homicídio qualificado, profanação de cadáver, dois crimes de acesso ilegítimo, um crime de burla informática e furto simples. Maria Malveiro responde ainda por um crime de furto de uso de veículo e um crime de detenção de arma proibida. Já Mariana Fonseca está também acusada de um crime de peculato.