Quando, em julho de 2019, o Governo anunciou a criação de uma bolsa de 1.000 técnicos superiores para a função pública, estava longe de pensar que seria uma pandemia a obrigar à adaptação dos processos de recrutamento. No final de janeiro, e pela primeira vez, as provas de conhecimento aplicadas na segunda fase do concurso foram feitas online, com recurso a uma ferramenta desenvolvida em Portugal e que permite vigiar os candidatos. Se é 100% infalível a detetar situações de fraude? Não, mas tem mecanismos para minimizar esses riscos, diz ao Observador o CEO da empresa responsável pelo Quiz One.
A ideia da ferramenta, segundo José Pêgo, médico e professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho, é “mimetizar, dentro do possível, a sala de exames real“. Desde logo, através de vídeo. O Quiz One, que já era usado em universidades, permite, simultaneamente, a aplicação de exames online e o controlo do candidato ou do aluno através da câmara do computador.
“Há instituições que adotaram [para a realização de exames] uma tecnologia mista. Usam Zoom, por exemplo, para vigiar e um outro software para fazer o exame. Só que isto tem alguns problemas”, indica José Pêgo. É que o aluno pode estar com a câmara ligada num computador e estar outra pessoa noutro computador, com o login do estudante, a fazer o exame. Ou seja, “não há nenhum match” entre quem está em frente da câmara e quem está a fazer o exame.
Esse “match” existe com a plataforma co-criada por José Pêgo, mas é por si só uma garantia anti-fraude? Não pode o candidato estar em frente ao computador e a pesquisar informação discretamente no telemóvel ou numa cábula? Sim, e José Pêgo reconhece que há situações “impossíveis de controlar num ambiente caseiro”, mas argumenta que o esquema tradicional, de exames presenciais, também não é infalível. “Na sala de aula também pode haver fraude. Eu tenho um irmão gémeo. Se ele estivesse aqui, você não conseguiria distinguir entre mim e ele”, exemplifica. Ainda que não combata as irregularidades totalmente, o software tem formas de as minimizar, garante.
Como? Se há programas que fazem a “deteção automática do olhar” do examinando, para garantir que está atento ao exame, a Quiz One não segue este método. “Temos a noção de que é um profiling [processamento automático de informação pessoal] que não é desejado pela maioria das pessoas e que vai contra aquilo que as comissões de proteção de dados preconizam”, explica José Pêgo.
No caso do software desenvolvido pela empresa ligada à Universidade do Minho, o candidato é vigiado por um “vigilante”, que através da câmara do computador consegue ver sem ser visto, protegendo assim a sua identidade. É esse vigilante que pode tentar certificar-se de que o candidato não desvia o olhar do ecrã para pesquisar informação num outro computador, no telemóvel ou numa cábula. Também tem acesso ao áudio do examinando durante toda a prova — o que inibe tentativas de comunicação do candidato com terceiros. Além disso, a partir do momento em que a prova é iniciada, a página não pode ser fechada — por exemplo, para procurar informação no computador onde a avaliação está a ser feita. Se o fizer, o exame é bloqueado.
No concurso de técnicos superiores para o Estado, onde o software foi usado, foram identificados problemas? Ao Observador, o Ministério da Administração Pública diz que “a realização da prova de conhecimentos decorreu com normalidade” e que não houve “registo de questões de maior”. Foram “ultrapassadas pequenas dificuldades durante a sua realização”, mas a tutela não refere quais. A vigilância remota foi feita por trabalhadores da Direção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas (INA). Segundo o ministério, o “ambiente controlado” permite ao candidato “efetuar a prova sem interrupções externas e com garantias de individualidade na sua realização”.
Este foi o método escolhido numa altura em que o número de novos casos diários ultrapassava os 10.000, no final de janeiro, e para “evitar atrasos na tramitação do procedimento concursal de recrutamento centralizado”. O Observador perguntou ao ministério quantos trabalhadores do INA havia por candidato e que alternativas foram dadas aos candidatos sem computador, mas ainda não obteve resposta.
O concurso para a bolsa de técnicos superiores permitiu, numa primeira fase e no ano passado, a seleção de 800 trabalhadores, um valor que ficou abaixo da meta de 1.000. Em setembro, foi aberto um novo procedimento concursal para recrutar os restantes 200 profissionais. Foi neste âmbito que as provas de conhecimento se realizaram remotamente.
Governo conclui processo de seleção de 800 técnicos superiores para o Estado
Alunos de medicina foram os cobaias da plataforma
A Quiz One foi desenvolvida por uma empresa “spinoff” da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho, a iCognitus4All – IT Solutions. Na equipa de fundadores estão pessoas ligadas à instituição, que continua a “beneficiar de muitos dos produtos” desenvolvidos pela empresa. A plataforma começou a ser usada em 2012, na Universidade do Minho, primeiro em exames para alunos de medicina. A intenção era que, a partir de um “banco de perguntas” organizado numa única estrutura, os docentes pudessem partilhar entre si as questões e recuperar exercícios de anos anteriores.
“As escolas médicas, em geral, têm uma maior apetência para fazer a gestão centralizada de um banco de perguntas“, explica José Pêgo. Na altura, as soluções que existiam no mercado eram “tecnicamente muito falíveis”. Hoje, já há outras plataformas semelhantes, mas “a maioria” ainda está “virada para a perspetiva do professor e não da instituição”, não permitindo a partilha de perguntas.
A plataforma está, assim, adaptada às especificidades dos exames de medicina (como o OSCE — Exame Clínico Objetivo Estruturado, que avalia o raciocínio clínico), mas “pode ser usada no ensino em geral”, refere o docente. Nalguns exames, permite que o aluno conheça logo a sua nota. Para os professores tem a vantagem de permitir escolher perguntas de anos anteriores, partilhá-las com outros docentes e obter dados estatísticos para “identificar padrões” de resposta. E possibilita a construção automática de perguntas, sem intervenção humana — só é requerida para inserir a informação que gera as questões.
José Pêgo dá um exemplo aplicado a uma prova de medicina. “Num exame que comece com uma queixa: Tenho dor torácica ou dor abdominal. Quais são as causas potenciais? No caso da dor torácica pode ser enfarte, pode estar ligada ao pulmão, pneumonia, pode ser um enfisema. Colocam-se as caraterísticas destes doentes no modelo e o software gera perguntas com base nessa informação”. O programa pode, no entanto, apresentar “situações irreais”, como um homem grávido. O software, também ele, aprende com os erros.
Além dos modelos de perguntas mais comuns, como a resposta aberta ou a escolha múltipla, mais recentemente, a equipa tem desenvolvido um outro género de prova, que é “impossível de reproduzir em exames presenciais”, em que não haja recurso a computador. O objetivo é que, à medida que o aluno acerte nas perguntas mais fáceis, o grau de dificuldade vá aumentando, “até haver um ponto em que já não consigo subir mais na performance”. “No fundo, o software vai-se adaptando à perfomance para o aluno não estar a perder tempo a repetir coisas que já conhece“, diz José Pêgo.
A pandemia, e o ensino à distância, permitiram à iCognitus4All “duplicar a carteira de clientes”, nomeadamente no estrangeiro. Os clientes estão em Inglaterra, na Polónia, na Holanda, Finlândia, no Brasil e noutras escolas em Portugal.