As recomendações do SNS24 sobre o que fazer nos casos de paragem cardiorrespiratória em contexto de pandemia de Covid-19 estão a agitar as redes sociais — aos olhos de vários utilizadores, as orientações parecem deixar a vítima à sua sorte. Como é o caso da distância de dois metros a manter para com uma vítima de engasgamento.

Ainda que defenda que a norma deve ser diferente em casos de engasgamento, onde diz não se dever guardar uma distância de dois metros, o coordenador da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Hospital de Santa Maria explicou ao Observador que essas indicações de modo genérico estão de acordo com as recomendações internacionais.

Luís Aguiar-Conraria, professor na Universidade do Minho, foi uma das pessoas que lançou a discussão, esta quarta-feira, depois de ter encontrado a informação no site do SNS24 — apesar de a informação já se encontrar online, pelo menos, desde outubro de 2020. Sobre o que fazer em caso de afogamento, o docente deixa o comentário no Twitter: “Uma coisa é certa. Mesmo que a vítima tenha Covid, não morrerá de Covid”.

Não realizar ventilações, tapar a boca da vítima com uma máscara ou tecido, manter uma distância de dois metros, estão entre as recomendações para evitar a transmissão do coronavírus SARS-CoV-2. Estas indicações, juntamente com a recomendação de não se recorrer à respiração boca-a-boca, deram o mote às indignações.

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Os cidadãos podem contribuir para o socorro de uma vítima em paragem cardiorrespiratória de uma forma eficaz, mesmo garantindo que tomam precauções para não serem infetados, garante José Alexandre Abrantes, enfermeiro-chefe na Medicina Intensiva e coordenador da VMER do Hospital de Santa Maria. Quanto à ventilação boca-a-boca, já não é uma boa recomendação há muito tempo, diz o enfermeiro, que defende mesmo que a instrução seja retirada do Suporte Básico de Vida.

A respiração boca-a-boca pode ser admitida entre familiares próximos, como casais ou de pais para filhos, mas é totalmente desaconselhada entre desconhecidos, diz José Alexandre Abrantes. O mais adequado é o uso de insufladores manuais ou as máscaras de reanimação descartáveis com filtro (que permitem enviar para a vítima, sem que o reanimador receba ar de volta).

E em relação a colocar uma máscara na vítima em paragem cardiorrespiratória, o enfermeiro diz que isso não afeta em nada o socorro, mas contribui para proteger quem o presta. José Alexandre Abrandes diz mesmo colocar a máscara cirúrgica por baixo da máscara de oxigénio e que isso não impede que a vítima seja oxigenada, mas reduz a probabilidade de emissão de partículas contaminadas.

Em tempos de pandemia da Covi-19 é necessário garantir a segurança do reanimador no socorro à vítima de paragem cardiorrespiratória. Sendo que a principal forma de transmissão do vírus é pela via aérea, o reanimador leigo (cidadão comum) deve proteger-se com uma máscara cirúrgica”, lê-se na recomendação do site do SNS24.

Porquê esta mudança nas recomendações? José Alexandre Abrantes explica que, com a pandemia, tem de se assumir que todas as vítimas em paragem cardiorrespiratória estão, potencialmente, infetadas com SARS-CoV-2. Se não estiverem, melhor, a probabilidade de reanimação aumenta.

Mas o que mais contribui para o sucesso do socorro, ou seja, o que determina se os profissionais de saúde vão conseguir reanimar a vítima ou não, são: primeiro, um alerta rápido, e, depois, as manobras de compressão torácica, diz o enfermeiro. E já era assim antes da pandemia. As compressões mantidas fazem com que o sangue continue a circular e permitem ganhar seis a oito minutos até à chegada das equipa de socorro (ou de um desfibrilhador).

Nos casos de afogamento, as manobras de compressão também são o procedimento mais adequado, diz José Alexandre Abrantes. Não só permitem que sangue continue em circulação, como a pressão vai fazer com que a água que tenha entrado para os pulmões possa sair. O enfermeiro diz que estes casos são “facilmente reanimáveis” e que o “suporte básico de vida costuma ser eficaz”, porque o coração para de bater quando a pessoa deixa de respirar e não por qualquer problema cardíaco.

Normas para engasgamento questionadas por profissional

O ponto em que as indicações do enfermeiro, que faz parte do grupo de trabalho internacional que elabora as recomendações de ressuscitação, não batem com as do site do SNS24 é sobre o engasgamento. Para José Alexandre Abrantes, as orientações mantêm-se iguais à época pré-pandemia, quando já não era aconselhável estar à frente da pessoa que está a tossir e que pode vir a libertar o que causou a obstrução. De resto, o reanimador de máscara pode ajudar com algumas pancadas nas costas ou com a manobra de Heimlich e manter-se sempre afastado da boca da vítima (que estará, naturalmente, sem máscara). Ou seja, não deve estar, defende, a dois metros de distância como determina a norma, desde que todas as regras sejam cumpridas.

A maior preocupação do coordenador da VMER do Santa Maria são, de facto, os doentes Covid-19, porque uma vez em paragem cardiorrespiratória são muito difíceis de reanimar, porque têm os pulmões muito danificados. “Em todas as paragens cardiorrespiratórias na rua [fora do hospital], de doentes Covid-19, não consegui reverter nenhuma”, diz. E mesmo no hospital, com acesso a todos os recursos, é difícil.

O enfermeiro deixa ainda uma recomendação importante para se aumentar o sucesso do socorro: saber dar o alerta. Para começar, as pessoas têm de perceber que, quando ligam para o 112, a primeira coisa a dizer (numa situação destas) é que se trata de um caso de saúde para a chamada ser imediatamente reencaminhada para o serviço competente, neste caso o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) — em vez de perderem tempo a contar a história toda ao operacional na central da polícia que atende a chamada. Depois, diz o enfermeiro, dar uma morada exata, com boas referências para uma rápida identificação do local e, de preferência, ter alguém à espera da equipa de socorro.