O tempo da ciência é muito mais lento do que o tempo de intervenção para uma doença, começa por acautelar Susana Sousa. O aviso inicial da cientista, líder do projeto de investigação HECOLCAP: a Solução de Um Só Passo para Infeções Ósseas Crónicas, está relacionado com o facto de esta pesquisa, cada vez que é noticiada, “suscitar sempre muitas expectativas” para intervenção imediata.

“Tem sido interessante, mas ao mesmo tempo incapacitante, porque os doentes que sofrem de infeções ósseas e pessoas ligadas aos doentes contactam-nos em situações desesperadas [para saber como aceder ao tratamento], porque esperam ver a tecnologia implementada o mais rapidamente possível”, diz a cientista de 58 anos, investigadora no i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, na cidade universitária do Porto.

De momento, esta tecnologia para a osteomielite – nome genérico para a inflamação e destruição óssea causada por bactéria, microbactérias ou fungo e consequente infeção do osso – está validada, o que significa que cumpriu a primeira fase de investigação, seguindo um método científico, cujos resultados comprovaram a viabilidade para implementação. Ou seja, foi feita a prova de conceito e os testes pré-clínicos de laboratório foram certificados. Tem até já duas patentes registadas e em progressiva atualização sempre que há aperfeiçoamentos.

Ao contrário dos vários passos do tratamento convencional (limpeza cirúrgica, antibioterapia endovenos e colocação local de um substituto ósseo depois da cura da infeção) o método HECOLCAP “permitirá a cura através de uma única intervenção cirúrgica”, diz Susana Sousa

O que falta? “Falta consolidá-la”, responde a líder da investigação. E isso corresponde à segunda fase do desenvolvimento de uma tecnologia. Neste caso, fazer os ensaios clínicos com voluntários com osteomielite, validar esses resultados e, depois, transferir a tecnologia. “Isso pode demorar ainda entre dois a quatro anos, na melhor das hipóteses”, sublinha, zelosa.

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Susana reforça que a novidade do HECOLCAP é o facto de ser um tratamento que será de “um só passo”. Ao contrário dos vários passos do tratamento convencional, que consiste “em limpeza cirúrgica”, pelo menos uma vez, em antibioterapia endovenosa”, e em “colocação local de um substituto ósseo depois da cura da infeção”, este método “permitirá a cura através de uma única intervenção cirúrgica”.

Ou seja, com a nova terapêutica proposta pela equipa do i3S, após a limpeza do osso infetado aplica-se localmente a fórmula patenteada do HECOLCAP, feita de grânulos porosos. Esses pequenos grãos são constituídos por “agregados de hidroxiapatite [constituinte mineral ósseo], por um filme descontínuo de colagénio”, que também está presente no osso, originando “um material compósito regenerador do osso” e por um antibiótico [vancomicina] libertado localmente.

Erradicação da infeção pela libertação local do antibiótico e preenchimento e consequente regeneração da cavidade óssea criada pela infeção”. Estes são os dois resultados pretendidos com uma única intervenção cirúrgica, diz Susana Sousa.

A tecnologia inovadora do HECOLCAP está, sobretudo, na composição dessa fórmula que mimetiza o osso, eliminando a infeção em cerca de três semanas e iniciando assim a formação de osso novo no local previamente infetado. Ao fim de oito semanas já é possível ver o osso saudável.

A nova tecnologia para a osteomielite está validada: cumpriu a primeira fase de investigação e os resultados comprovaram a viabilidade para implementação. Os testes pré-clínicos de laboratório foram certificados e tem até já duas patentes registadas

Susana Sousa chama-lhe, por isso, de “plataforma interessante”. “Podemos ter várias moléculas que podemos imobilizar. No caso das infeções ósseas, precisamos de um antibiótico, mas poderá ser outro tipo de molécula [que se pode adicionar], como um anti-inflamatório, por exemplo. Ou até pode ser um fator de crescimento.” Abre-se também a porta para futuras possibilidades em contexto cirúrgico.

É possível ver como tudo acontece, na prática, na imagem do computador da cientista, que mostra a anatomia microscópica do funcionamento da tecnologia através de uma amostra dos ensaios pré-clínicos. Vemos pequenos pontinhos em grande quantidade que correspondem às bactérias de um osso infectado. Na imagem seguinte, depois de ser limpo e de se ter aplicado o HECOLCAP, percebe-se como as bactérias se extinguiram. Por isso veem-se zonas onde há formação do novo osso. A tecnologia, ao ser aplicada, adapta-se à necessidade do paciente, porque intervém de forma local para responder à infeção.

Susana também tem um percurso de constante adaptação. É professora universitária, natural do Porto, e sonhou ser dentista. É vegetariana e diz que sempre foi “indisciplinada”, porque, como “tinha muita energia” e estudou num colégio de freiras, “só queria correr”. Cresceu a brincar na rua e a andar de bicicleta no Amial, no concelho do Porto, no tempo em que era uma região de campos agrícolas – hoje é uma zona residencial, que estabelece o limite entre o centro da cidade e a área suburbana.

Licenciou-se em Química em 1986, escolheu a vertente de investigação, mas ainda chegou a lecionar dois anos no ensino secundário. A indisciplina de alguns estudantes mais novos fê-la mudar o rumo para o ensino universitário, onde é professora adjunta no Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP). É Mestre em Engenharia de Materiais pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (1992), onde também se doutorou em Engenharia Metalúrgica e de Materiais (2007). Por isso, as Ciências Médicas e da Saúde, com foco nas Biotecnologia Médicas e Biomateriais são as áreas-chave da sua experiência e vieram reforçar a escolha estratégica do i3S para a liderança desta equipa.

A equipa HECOLCAP: Carlos Cerqueira, Catarina Coelho, Tatiana Padrão, Susana Sousa, Nuno Alegrete e Fernando Monteiro

O HECOLCAP tem atualmente um grupo nuclear de cinco pessoas, além de Susana Sousa: o professor e investigador Fernando Monteiro, o cirurgião-ortopedista Nuno Alegrete, as investigadoras Catarina Coelho e Tatiana Padrão e o economista Carlos Cerqueira. Além disso, têm o apoio do gabinete de transferência de tecnologia da instituição: Bárbara Macedo e Hugo Prazeres.

A génese do projeto surgiu há cerca de dez anos. Por isso, quando apresentaram o projeto para validação à Fundação “la Caixa” – que o financiou em setenta mil euros [ver informação no final do artigo], “já estava muito avançado”, porque tinham alguns ensaios que davam já garantias de eficácia, devido a vários contributos ao longo da última década.

“[O cirurgião-ortopedista] Nuno Alegrete desafiou o professor Fernando Jorge, que depois me desafiou a mim, defendendo que faltava uma tecnologia que fosse eficaz para as infecções ósseas”, explica Susana Sousa. Por isso, em 2011, no início do ano letivo do Mestrado em Engenharia Biomédica do ISEP – onde ela e o colega lecionam – incentivaram os estudantes a debruçarem-se sobre esse tema.

A investigadora Catarina Coelho agarrou a ideia e a primeira patente foi aprovada em 2015, como resultado da tese defendida em 2013: “Grânulos de nanohidroxiapatite/colagénio heparinizados para libertação controlada de vancomicina”.

“Ela começou do zero”, faz questão de sublinhar Susana Sousa. “O trabalho foi tão bem sucedido” que acabou por motivar a criação de uma equipa para esta linha de investigação.

Depois, a investigadora Tatiana Padrão no mesmo mestrado – “Produção e caracterização de um biocompósito de nanohidroxiapatite/colagénio para a regeneração óssea e libertação controlada de um antibiótico” – veio melhorar algumas propriedades, como o transporte e manuseamento do material, tornando-o mais resistente. “Tem, agora, uma porosidade interconetada para haver fluxo de células e proteínas, para que haja crescimento do osso”, diz a coordenadora da investigação.

A fórmula do HECOLCAP inclui grânulos porosos constituídos por “agregados de hidroxiapatite [constituinte mineral ósseo] e por um filme descontínuo de colagénio”, originando “um material compósito regenerador do osso” e por um antibiótico [vancomicina] libertado localmente

A osteomielite é uma das doenças mais antigas de que há registo. O termo terá sido cunhado em 1844 pelo médico francês Auguste Nélaton e é, atualmente, “uma doença para a vida” que pode ser letal, com sintomas como febre, dor crónica, cansaço, inchaço, calor e vermelhidão na área infetada.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, foi confirmado que é uma patologia pré-histórica, com a publicação de uma descoberta na área da Palentologia na revista científica Cretaceous Research, onde se analisa, pela primeira vez, a infeção aguda num titanossauro senil do Cretáceo (período geológico que corresponde ao intervalo de tempo de 145 a 65 milhões de anos) descoberto no Sudeste do Brasil. Essa investigação documenta, de forma inédita, a descrição histológica detalhada da inflamação óssea grave e, apesar de ser num dinossauro, os resultados trazem novos conhecimentos médicos, nomeadamente no campo da patologia. Desde logo porque, no processo de pesquisa, os cientistas constataram que há falta de dados histológicos sobre a doença. Depois, o desenvolvimento não era conhecido na medicina moderna ao nível microscópico.

“Tem sido interessante, mas ao mesmo tempo incapacitante”, diz a investigadora. “Os doentes de infecções ósseas e pessoas ligadas a eles contactam-nos em situações desesperadas. Esperam ver a tecnologia implementada o mais rapidamente possível”

De acordo com o National Center for Biotechnology Information, dos EUA, estima-se que, a cada ano, a osteomielite afete mais quatro milhões de pessoas – meio milhão só na Europa e Estados Unidos. A infeção óssea é normalmente associada com maior prevalência à úlcera do pé diabético, à implantação de próteses e a fraturas expostas. Mas poderá surgir de outras doenças como artrite, por exemplo.

Temos cada vez mais doentes de diabetes do tipo 2, trauma, acidentes e ainda das cirurgias associadas a infeções”, nota, enfaticamente, a cientista para alertar para a gravidade da situação.

Dado que a osteomielite pode surgir de várias patologias, não existem ainda dados adequados, em Portugal. Foi também essa dificuldade que Nuno Alegrete, cirurgião-ortopedista a trabalhar neste projeto de investigação, encontrou quando tentou levantar registos para o seu doutoramento, que se debruça sobre a osteomielite e a aplicação do HECOLCAP. Ao que tudo indica, apenas existem dados de pacientes que estiveram internados. Os diagnósticos dos pacientes com osteomielite seguidos em consulta não são codificados, logo não são contabilizados.

Alguns dados disponíveis são, essencialmente, sobre osteomielite em diabéticos. Cruzando informação da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal e da Revista Portuguesa de Diabetes chega-se a conclusões preocupantes: há anualmente cerca de seiscentos novos casos de diabetes por cem mil habitantes em Portugal. Noventa por cento dos casos são do tipo 2, onde o risco de osteomielite, e consequente amputação, é alto. Um sétimo dos diabéticos e um terço dos que têm úlceras plantares têm osteomielite. Há cerca de 1500 amputações, anualmente. Depois, de acordo com o Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, no Porto, um terço dos doentes com úlcera do pé diabético morre em três anos.

Por isso, as expectativas altas em relação à terapêutica para a osteomilite devem-se, sobretudo, ao facto de, atualmente, não existir nenhuma solução eficaz, quer para erradicar a infecção óssea, quer para promover a regeneração do osso numa só intervenção.

A infecção óssea é normalmente associada com maior prevalência à úlcera do pé diabético, à implantação de próteses e a fraturas expostas. Mas poderá surgir de outras doenças como artrite, por exemplo

O tratamento habitual custa, em média, trinta mil euros por paciente e consiste na intervenção cirúrgica, entre duas ou mais operações, “com medicação intravenosa prolongada e muito agressiva pós-cirurgia”, que tem um “nível de eficácia muito relativo na ação do osso danificado”.

“Perguntámos aos especialistas, como cirurgiões ortopédicos ou endocrinologistas, que seguem doentes com diabetes, para perceber quais os maiores problemas associados”, resume Susana Sousa, elencando uma vasta lista. “A infeção é difícil de erradicar, a hospitalização leva quatro a seis semanas em cada ronda de tratamento, a regeneração óssea a longo prazo é difícil, o paciente tem dor crónica, a mobilidade é reduzida e deficiente e o absentismo laboral é, inevitavelmente alto.”

Para agravar o cenário, há, ainda, 40% de incidência desta doença e um elevado risco de amputação. Logo, há “o fator falta de qualidade de vida e impacto psicológico em todo este processo”, que não é quantificável.

A cientista garante que o HECOLCAP “é uma tecnologia muito importante que poderá solucionar alguns dos problemas da infecção óssea”. Um osso infetado “está desfeito”, indica, enquanto mostra a imagem do que parece um amontoado de areia muito esbranquiçada e de aspeto húmido.

De seguida exibe uma imagem com um osso solidificado, regenerado, e saudável. O HECOLCAP permite esta recuperação ao fim de dois meses. “Neste caso, ao contrário do tratamento convencional, uma semana depois da intervenção o doente pode voltar para casa e recuperar a sua mobilidade.”

Não há soluções eficazes para erradicar a infeção óssea ou promover a regeneração do osso numa só intervenção. O HECOLCAP permitirá a recuperação ao fim de dois meses. “Neste caso, ao contrário do tratamento convencional, uma semana depois da intervenção o doente pode voltar para casa e recuperar a sua mobilidade”

Para colocar em perspetiva concreta o que estamos a falar, Susana avança que, com o HECOLCAP, haverá também “redução de custos” em todo processo, tornando o tratamento mais acessível, quer para o doente, quer para os hospitais, desde logo porque o tempo de hospitalização é menor. Depois, a recuperação poderá ser em ambulatório. Os doentes poderão, também, regressar ao trabalho mais cedo. Mas, “mais importante”, aumenta-se “o bem-estar do doente”, com “dor reduzida” e “menor risco de amputação”.

Os próximos passos são transferir a tecnologia para o mercado e consolidar um consórcio de apoios. “Achamos que também poderá ser muito importante para cenários de guerra e começámos uma conversa com os Médicos Sem Fronteiras e houve interesse”. Outras parcerias incluem as associações de diabetes e trauma, traumatologistas, cirurgiões ortopédicos, infeciologistas, hospitais e voluntários para os futuros ensaios clínicos.

A equipa vai agora candidatar-se a outros fundos para consolidar o projeto. “Um problema da ciência é o investimento e é isso que limita muitos projetos nesta fase”, nota Susana. Do que depender deles, garante a líder do HECOLCAP, vão fazer tudo para a tecnologia ver a luz do dia e ser implementada em contexto médico, pela urgência em solucionar um problema grave, com a convicção de que vai melhorar a qualidade de vida dos doentes. E salvar vidas, também.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto HECOLCAP: A Solução de Um Só Passo para Infecções Ósseas Crónicas, liderado por Susana Sousa, do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, foi um dos vinte selecionados (dois em Portugal) – entre 85 candidaturas internacionais – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do programa Caixa Impulse. A investigadora recebeu setenta mil euros. O CaixaImpulse promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2021 encerraram em outubro e para a edição de 2022 deverão abrir no próximo verão (data a anunciar).