É uma promulgação que na verdade é um veto a uma vontade do Governo e que prova que Marcelo Rebelo de Sousa não abdica de pôr um peso na balança do semi-presidencialismo quando é preciso. Todos os partidos no Parlamento, da esquerda à direita, uniram-se para aprovar apoios sociais que iam mais longe (e custavam mais dinheiro) do que os aprovados pelo Governo de António Costa. O PS foi o único a votar contra e o Governo pôs-se no terreno a tentar parar tudo via Belém: fez chegar a Marcelo um parecer jurídico a defender a inconstitucionalidade dos diplomas por violarem a lei-travão e pressionou publicamente o Presidente para que vetasse a lei ou a enviasse para o Tribunal Constitucional. O Presidente promulgou os diplomas numa nega clara a São Bento, deixando ainda vários recados a António Costa.

Nos argumentos para vetar a lei, Marcelo começa pela parte jurídica e explica que — ao contrário do que defende o Governo — os diplomas não são inconstitucionais e que não violam a chamada “lei-travão” (desde logo porque não estão quantificados os gastos e há instrumentos flexíveis para contornar um eventual incumprimento da execução orçamental). Ainda assim, avisa a oposição que, se esta prática for “constante”, não contam mais com ele.

O Presidente justifica a decisão também ponto de vista político: lembra a António Costa que lidera um governo minoritário, logo tem de negociar com os outros partidos no Parlamento. O Presidente acredita ainda que se travasse esta lei estaria a contribuir para um aumento da tensão política, que podia escalar, ainda para mais em ano eleitoral, para um crise política “lesiva para o país”. É Marcelo a querer preservar o que resta da geringonça.

Marcelo contraria Governo e promulga medidas de apoio social “urgentes”

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Primeiro recado: As medidas são necessárias

 A adoção das medidas sociais aprovadas corresponde, em diversas matérias, na substância e na urgência, a necessidades da situação vivida. Sendo certo que cobertas, em parte, por legislação do Governo.”

Marcelo Rebelo de Sousa tem manifestado preocupação com o facto de os apoios sociais não chegarem a tempo e horas aos portugueses mais afetados pela pandemia e tem feito pressão pública (e privada) para que o Governo não descure esta frente de batalha. Ora, quando lhe chegaram às mãos estes diplomas de apoios sociais aprovados por uma chamada “coligação negativa” (quando todos os partidos se unem contra o Governo), o Presidente ficou, como contou a Renascença, num dilema. Por um lado, teria vontade de permitir apoios mais ambiciosos (como tem vindo a pedir), por outro não queria contribuir com a promulgação para o desequilíbrio das contas públicas.

É precisamente por aqui que Marcelo Rebelo de Sousa começa a justificar a decisão, como se fosse mais importante do que a discussão jurídica em si. O Presidente reconhece que estas medidas aprovadas contra a vontade do PS são necessárias (e urgentes) tendo em conta a situação que o país vive. E mais: o Presidente lembra que, em parte, embora de forma menos ambiciosa, há apoios que constam destes diplomas que tinham sido propostos pelo próprio Governo. Resolvida esta questão, Marcelo segue para a argumentação jurídica.

Segundo recado: Os diplomas não são inconstitucionais nem violam a lei-travão

Há aumento de despesa potencial, mas não um montante definido

As leis da Assembleia da República têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa.
3.ª – A Constituição proíbe, no seu artigo 167.º, n.º 2, que possam ser apresentadas, pelos deputados, iniciativas que impliquem aumento de despesas ou redução de receitas, em desconformidade com o Orçamento do Estado em vigor para o respetivo ano. Só o Governo pode fazê-lo, como garantia de que a Assembleia da República não desfigura o Orçamento que ela própria aprovou, criando problemas à sua gestão pelo Governo.
4.ª – Os três diplomas em análise implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas, mas de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar. E, assim sendo, deixando em aberto a incidência efetiva na execução do Orçamento do Estado.”

O Presidente começa por explicar que as leis da Assembleia da República, mesmo quando aprovadas pela maioria dos deputados, têm limitações. Daí que tenham de ser promulgadas pelo Presidente da República, que muitas vezes as veta ou envia para o Tribunal Constitucional (algo que Marcelo, até agora, só fez com a eutanásia e algumas normas do diploma relativo  ‘barrigas de aluguer). O chefe de Estado reconhece depois que a chamada lei-travão (nº2, do artigo 167º da Constituição), impede de facto o próprio Parlamento de aumentar a despesa ou reduzir a receita do Estado. Admite também que os três diplomas podem ter esse impacto no Orçamento, mas diz que são para já implicaçõespotenciais“, uma vez que não há “montantes definidos à partida” e que dependem daquilo que for a evolução da pandemia.

É possível interpretação de que lei respeita Constituição

5.ª – O próprio Governo tem, prudentemente, enfrentado a incerteza do processo pandémico, quer adiando a aprovação do Decreto de Execução Orçamental, quer flexibilizando a gestão deste, como aconteceu no ano 2020.
6.ª – O Presidente da República pode enviar ao Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva – isto é, anterior à promulgação de diplomas – aqueles que lhe suscitem dúvidas sobre se respeitam a Constituição.
7.ª – Tem, porém, entendido, desde o primeiro mandato, e sobretudo durante a presente crise, só o dever fazer no caso de não ser, de todo em todo, possível uma interpretação dos diplomas que seja conforme à Constituição.”

Marcelo Rebelo de Sousa começa por explicar que, perante a crise pandémica, a imprevisibilidade da execução orçamental é muito maior e que o próprio Governo tem recorrido a instrumentos que permitem flexibilizar o cumprimento das metas orçamentais. O Presidente explica ainda que, por norma, envia para o Tribunal Constitucional os diplomas que suscitem dúvidas sobre a Constituição, mas só se não for “de todo possível” uma interpretação que enquadre essas leis na Constituição. Ora, neste caso, Marcelo não tem dúvidas de que é possível a interpretação de que os diplomas são constitucionais.

O Presidente destoa do primeiro-ministro que na sexta-feira admitiu ter alertado o Presidente que a lei era inconstitucional. “Perante uma lei que viola a lei-travão prevista na Constituição, o Governo informou o Presidente da República”, disse António Costa sobre o parecer enviado pelo Executivo ao Presidente. Recusou, no entanto, este ser um ato de pressão Belém: “Obviamente, não é uma pressão, é uma informação que cabe ao Governo dar (…) O senhor Presidente da República exercerá os seus poderes nos termos que bem entender”. Mas os argumentos de Marcelo não se esgotam aqui.

Aviso à oposição: que isto não se torne regra

Quando é possível essa interpretação conforme à Constituição, tem optado por promulgar, tornando claro em que termos, no seu entender, os diplomas devem ser aplicados por forma a respeitarem a Lei Fundamental.
Quando é impossível essa interpretação e a iniciativa parlamentar merece acolhimento substancial, tem recorrido a uso de veto corretivo, convidando a Assembleia da República a aproveitar a sua iniciativa, tornando-a conforme à Constituição.
Naturalmente que, em caso de convicção jurídica clara, de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e nenhuma justificação substancial legitimar o uso de veto, se reserva o recurso ao Tribunal Constitucional, tal como no caso de a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado.”

Marcelo Rebelo de Sousa diz que — mesmo quando há um grande consenso parlamentar em torno de uma medida — se houver uma violação flagrante da Constituição opta por fazer um “veto corretivo”, mas que isso não se verifica neste caso. O Presidente deixa ainda um aviso à esquerda e à oposição à direita: no futuro, poderá travar diplomas caso esta prática se torne “constante” e desvirtue o Orçamento de Estado aprovado. Ou seja: não contarão com ele para um dar cobertura a uma governação alternativa por via de diplomas parlamentares nas tais coligações de todos-contra-o-PS.

Marcelo dá recados, mas não é moço de recados: Governo que envie para o TC

11.ª – Como é óbvio, dispõe o Governo do poder de suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade dos diplomas agora promulgados, como já aconteceu, noutros ensejos. É a Democracia e o Estado de Direito a funcionarem.”

Mesmo que Costa tenha dito que estava apenas a informar o Presidente, o Governo pressionou Marcelo Rebelo de Sousa a vetar o diploma ou, em alternativa, enviá-lo para fiscalização no Tribunal Constitucional. O Presidente da República não o fez. O próprio Presidente é um constitucionalista de referência e discorda do parecer jurídico que lhe chegou às mãos. De qualquer forma, Marcelo Rebelo de Sousa diz ao Governo que pode, se assim entender, enviar o diploma para o Palácio Ratton. Só tem de ter presente um ponto: se insistir em hostilizar os partidos com quem habitualmente negoceia, pode pôr em risco a sobrevivência do próprio Governo.

Terceiro recado: O governo é minoritário e crise política tem de ser evitada

Governo tem de durar até 2023 e preservar o que resta da “geringonça”

8.ª – Sempre com a preocupação de evitar agravar querelas políticas, em momentos e matérias sensíveis, o que é ainda mais evidente em situações extremas de confronto entre Governo minoritário e todos os demais partidos com assento parlamentar, situações essas que aconselham, de parte a parte, a concertação de posições e não a afrontamento, sobretudo numa crise tão grave, a exigir espírito de diálogo e não espírito de dissensão ou discórdia, e muito menos um clima de crise política, a todos os títulos indesejável.

Marcelo Rebelo de Sousa prometeu, quando tomou posse para um segundo mandato, que tudo faria para garantir a estabilidade política e que o Governo de António Costa chegaria ao fim (a 2023). Como supervisor da governação, o Presidente vê aqui um foco de conflito e até sugere que, se travasse a lei, iria aumentar as tensões nos partidos que atualmente suportam o Governo viabilizando documentos fundamentais, como o Orçamento de Estado (sem geringonça, assentou no último OE em apenas PS-PCP-PAN). É um recado ao Governo de António Costa para não promover guerras com os partidos à sua esquerda.

Não se deve arriscar uma crise política

10.ª – Em suma, para o Presidente da República é visível o sinal político dado pelas medidas em causa, e não se justifica o juízo de inconstitucionalidade dessas medidas. O que, aliás, parece ser confirmado pela diversa votação do partido do Governo em diplomas com a mesma essência no conteúdo, ora abstendo-se ora votando contra.

(…)
12.ª – O Presidente da República chama, no entanto, de forma particular neste momento, a atenção para o essencial do presente debate.
De um lado, não há Governo com maioria parlamentar absoluta, sendo essencial o cumprimento da legislatura de quatro anos.
Do outro lado, os tempos eleitorais podem levar, por vezes, as oposições a afrontamentos em domínios económicos e sociais sensíveis.
Compete ao Presidente da República sublinhar a importância do entendimento em plenas pandemias da saúde, da economia e da sociedade. Sensibilizando o Governo para o diálogo com as oposições e tornando evidente às oposições que ninguém ganharia com o afrontamento sistemático, potencialmente criador de uma crise lesiva para Portugal e, portanto, para os Portugueses.

Marcelo Rebelo de Sousa assume-se definitivamente como uma espécie de apaziguador da “geringonça”. Quando iniciou o seu primeiro mandato tinha por objetivo descrispar as tensões entre a direita e a esquerda. Agora, a grande preocupação é apaziguar as tensões dentro da própria “ex-geringonça”, que já não tem tantas peças como no primeiro mandato de António Costa. O Presidente fala em “oposições”, sugerindo que o Governo não tem apenas uma oposição clara da direita parlamentar, mas também da esquerda. O chefe de Estado destaca ainda  que “os tempos eleitorais” (e este é ano de autárquicas, em que PCP e PS são adversários diretos) podem levar a “afrontamentos” que não desejáveis. Marcelo verbaliza mesmo que, caso esta tensão escalasse entre o Governo e os outros partidos parlamentares, havia potencialmente uma “crise lesiva para Portugal”. E isso Marcelo quer evitar a todo o custo.