Mais de 5.000 pessoas fugidas da violência em Palma, na província de Cabo Delgado, foram localizadas através de uma base criada pelos Voluntários Anónimos de Moçambique (Vamoz), que investem agora na recuperação psicológica de quem vivenciou uma “barbaridade”.

“Assim que as pessoas começaram a aparecer e a estar em segurança, foi gritante a necessidade de apoio psicológico. Isto não é um acidente natural, é uma situação de guerra, de conflito armado e violência extrema”, disse Joana Martins, voluntária da Vamoz.

De nacionalidade portuguesa e a viver em Moçambique há dez anos, Joana Martins é uma das voluntárias deste movimento que, após os ataques em Palma, no passado dia 24 de maio, promoveu a campanha #HOPE4PALMA, que consiste no registo e localização de pessoas desaparecidas.

A Vamoz, que conta com elementos de várias nacionalidades, mas é um movimento de Moçambique, já atua em Palma desde 2020 e nos últimos ataques também ficou sem saber onde estavam alguns dos voluntários.

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Pensámos que o que estávamos a passar era o mesmo que outras empresas, organizações e famílias estavam a passar, o mesmo desespero: Não saber o que aconteceu, não ter informação no terreno”, contou à agência Lusa.

E prosseguiu: “Montámos um sistema de ´lost and found` [achados e perdidos] para listar as pessoas desaparecidas, ter o contacto dos familiares e depois ter o outro lado, de pessoas que se foram encontrando e que foram transportadas de avião, de barco, ou a pé. A partir do momento que temos conhecimento dessas pessoas avisamos os familiares ou as empresas para onde trabalham”.

Até ao momento, foram listadas 6.016 pessoas perdidas e 5.115 foram encontradas por quem as procurava, através da ajuda da Vamoz.

Mas este é apenas o primeiro passo de uma ajuda que, saradas as feridas físicas, resultantes de combates ou das longas caminhadas durante a fuga, passa agora pela ajuda psicológica.

“Fizemos uma parceria com a Associação de Psicólogos de Moçambique e Fundação MASC e temos uma linha de apoio com cerca de 31 psicólogos que prestam apoio constante às vítimas que assim o desejam”, explicou.

A ajuda é mais necessária às vítimas da violência extremista ou que assistiram a ela e que apresentam muitos sintomas de stresse pós-traumático.

“Algumas assistiram a barbaridades a serem cometidas à sua frente, aos seus familiares, alguns a serem mortos. Outros, viram todos os outros serem mortos e ficaram para contar a história e para mandar uma mensagem. Algumas famílias perderam filhos, membros da família durante a fuga”, relatou.

“Outros ficaram retidos em Palma, nas suas casas ou noutros sítios, durante muitos dias e tudo o que está relacionado com o som ou com o cheiro a queimado ativa esse trauma e inquietação. Temos outras pessoas que fugiram e fisicamente ficaram muito danificadas devido ao caminhar, à desidratação, à fome”, acrescentou.

Mas a violência deixou outras marcas, principalmente nas pessoas que “estão bem, mas na ansiedade de não saber dos seus familiares ou têm de gerir os seus familiares quando eles voltam para casa e começam a ter comportamentos que não parecem ser dessa pessoa”.

“Voltar à realidade é muito difícil, principalmente quando alguém saiu com uma mão à frente e outra atrás e especialmente se assistiram a estes horrores ou perderam um familiar ou amigo. É um cocktail muito difícil de gerir”, declarou.

A Vamoz tem agora uma central de atendimento telefónico que funciona permanentemente e que atende chamadas telefónicas de quem procura ou é quer ser procurado, mas Joana Martins reconheceu que são poucos os que conseguem aceder a este serviço.

“É pouco provável que a população comum, que pouco sabe ler ou escrever e tem pouco acesso a um telefone, tenha reportado o desaparecimento de um familiar e quando os encontramos não temos a quem reportar”, disse.

Contudo, a Vamoz conta com a colaboração que mantém com associações e agências de ajuda humanitária que se dedicam a receber estas pessoas e em muitos casos a encaminhá-las para centros de acolhimento, quando não têm familiares nesses locais.

Joana Martins conta que, após um inicial esforço massivo de evacuações e resgates pelas Nações Unidas e pelas empresas que estão a desenvolver o projeto de gás no local dos ataques, como a Total, desde 01 de abril que os voluntários estão a trabalhar sozinhos.

“Basicamente é apenas a sociedade civil e o ramo empresarial, com a negociação, através das Forças Armadas, a poder fazer a evacuação. Também abrimos uma ponte aérea para poder tirar os feridos mais graves”, explicou.

A voluntária alerta para a deterioração significativa da situação em Palma, de onde a população está outra vez “a sair com medo dos ataques”.

“Temos muita dificuldade em fazer a entrega e apoio a estas cerca de 25 a 30 mil pessoas no fundo dos pontos de acesso, porque não temos como fazer chegar apoio humanitário: alimentos, sabão, as coisas mais básicas, para pelo menos as pessoas aguentarem”, lamentou.

Joana Martins diz que a grande preocupação dos voluntários é que o assunto morra e fique abandonado.

“As empresas já estão a deixar os seus projetos, mas existe uma massa enorme de moçambicanos que precisa de assistência e de respostas”, declarou, acrescentando: “É preciso manter a consciência que há comunidades inteiras que ali estão e são as primeiras a sofrer com esta situação”.

“É natural que passado um mês, e especialmente com a perda de relevância ou a paragem do desenvolvimento de gás que seja mais uma zona do mundo em conflito e que fique em esquecimento e isso leva à inércia de todos, o que não é algo que queremos ver acontecer”, concluiu.

Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e 714.000 deslocados, de acordo com o Governo moçambicano.