Se houve nota dominante nas declarações de ministros das Finanças e responsáveis europeus esta sexta-feira — além do “grande otimismo na recuperação” das economias — é que todos ficaram “muito satisfeitos por estar em Lisboa”. E há razões para isso (além do que a capital portuguesa lhes possa, de facto, oferecer). É que, ao contrário de outros momentos no passado, em que as discussões foram longas, difíceis e até mesmo constrangedoras, a vinda à capital portuguesa destes responsáveis será — desta vez — uma espécie de viagem para “rever a família” (diplomaticamente falando) e pôr a conversa em dia (muitas vezes nos bastidores), depois de meses afastados por causa da pandemia.
Se mais nada acontecer este sábado de relevante, os encontros de Lisboa — tanto o Eurogrupo (que reúne os ministros das Finanças da Zona Euro), como o Ecofin (que abrange os restantes estados-membros) — ficarão para a História como o momento em que os ministros puderam voltar a encontrar-se presencialmente, ainda em pandemia. E pouco mais.
Para trás ficaram as zangas desencadeadas pela “bazuca” europeia. E, por outro lado, ainda é cedo para falar a sério de reformas estruturais e do tão falado “semestre europeu”, que obriga os estados-membros a cumprirem rigorosas regras orçamentais. A pandemia, afinal, ainda não foi embora, as regras orçamentais vão ser mais uma vez suspensas, e o foco está no processo de vacinação, nos planos de recuperação, no investimento, no crescimento económico e na manutenção dos apoios. Discussões relativamente fáceis, porque as decisões mais difíceis já foram tomadas em reuniões anteriores.
De resto, no que diz respeito ao Ecofin, sendo desta vez um encontro informal, não serviu para tomar decisões mais imediatas, mas antes para “debater questões de médio-prazo” ligadas ao crescimento e aos estímulos que estão a ser dados para relançar as economias europeias, como fez questão de assinalar Valdis Dombrovskis, vice-presidente da Comissão Europeia, à entrada da reunião.
Não surpreende, por isso, que as declarações mais marcantes destes encontros nem tenham sido dos “atores principais” — os ministros das Finanças e os responsáveis da Comissão Europeia — mas de Christine Lagarde, que antecipava no Twitter uma agenda com muitos assuntos, “incluindo reflexões sobre as lições aprendidas durante a pandemia”.
Os restantes responsáveis ainda deixaram algumas notas de “cautela” nos diferentes discursos, mas o que prevaleceu foi, sobretudo, a confiança na recuperação económica. Seria a presidente do Banco Central Europeu a deixar os avisos mais sonantes.
Always a pleasure to see Eurogroup President Paschal Donohoe.
There’s a lot on the agenda for today’s meeting here in Lisbon, including reflecting on lessons learned from the pandemic. pic.twitter.com/VcX4CoMWlP
— Christine Lagarde (@Lagarde) May 21, 2021
“Mais falências”, o perigo do malparado e os que só recuperam em 2023
A líder do BCE, que participou como convidada no Eurogrupo — tal como Klaus Regling, diretor do Mecanismo Europeu de Estabilidade —, lembrou em conferência de imprensa conjunta com os outros responsáveis europeus, que parte da crise terá consequências mais tarde.
Apesar de referir que concorda com as perspetivas da Comissão Europeia para as economias dos estados-membros, que deverão voltar aos níveis pré-pandemia em 2022, Lagarde deixou claro que a recuperação “é incerta e deixará marcas”.
Desde logo, há o problema das falências, que “têm sido dramaticamente baixas nos últimos meses”, uma vez que os estados-membros têm injetado dinheiro nas economias, apoiando empresas e famílias. Mas não será sempre assim — porque os apoios não duram para sempre — e Lagarde avisa que haverá “mais falências” nos próximos tempos.
A questão dos apoios também mereceu atenção de Lagarde — e de outros responsáveis europeus —, uma vez que, na opinião da política francesa, nem todos os trabalhadores vão conseguir recuperar rendimento no próximo ano. “Estou a falar das pessoas que ou estão atualmente em desemprego ou em inatividade, para quem vemos o regresso de uma situação melhor em 2023, não em 2022”, disse Lagarde.
A “incerteza” que a UE enfrenta vai obrigar “a políticas coordenadas e de apoio”, que “continuarão a ser necessárias nos próximos meses” para garantir que a recuperação é sólida.
A juntar à lista de problemas está o potencial crescimento do crédito malparado na zona euro, que vai merecer “atenção especial”. Lagarde indica ainda que o BCE está a “acompanhar de perto” a subida de juros das dívidas públicas dos estados-membros, mas desvaloriza a atual tendência para subida de preços, dizendo ser “temporária”.
O programa de compra de ativos, que tem permitido aos estados-membros o acesso a juros baixos junto dos mercados, vai continuar “pelo menos até março de 2022”, disse ainda Lagarde. Mas, neste capítulo, mostrou-se pouco interessada em dar pistas sobre o que pode acontecer mais tarde. É “muito cedo — e na verdade desnecessário — debater questões de longo prazo”, respondeu a líder do BCE. “O nosso foco em junho será de ter condições favoráveis de financiamento para a economia em geral e para todos os setores”.
Vários estados-membros devem “rever em alta as estimativas de crescimento”
Os avisos de Christine Lagarde contrastam com o “tom de grande otimismo” sobre a recuperação europeia que João Leão diz ter sido transversal nas discussões do Ecofin informal, a reunião de ministros das Finanças de toda a UE que decorreu na parte da tarde no CCB.
O momento é de “recuperação, de viragem”, sendo, por isso, necessário, passar de medidas de emergência para outras que se foquem no crescimento, promovendo o investimento, disse João Leão em conferência de imprensa no final da reunião.
“Quer Portugal, quer muitos dos meus colegas estão a assinalar que provavelmente vão rever em alta as estimativas de crescimento este ano, porque estamos a atravessar um momento muito forte de recuperação e uma viragem muito positiva em Portugal e no resto da Europa”, afirmou.
Numa entrevista transmitida esta manhã pela Bloomberg TV, João Leão já tinha admitido que, no caso português, poderia haver uma revisão em alta para 5% — em vez dos 4% estimados no Programa de Estabilidade, entregue em abril — caso se registasse uma grande vaga de turistas a partir deste verão e se o plano de vacinação correr como previsto.
Os planos de recuperação que estão a ser entregues em Bruxelas são ainda um elemento “fundamental” nessa equação e João Leão reitera que quer o plano português entre os primeiros a serem aprovados pela Comissão Europeia, ainda em junho.
Os ministros das Finanças concordaram ainda que é “muito importante nesta fase não retirar os estímulos cedo demais”, mantendo “uma política orçamental que dá apoio à economia nos próximos tempos”, disse o governante português. Nesse sentido, estão de acordo em “manter as regras orçamentais suspensas no próximo ano” para que os países se concentrem “no crescimento económico e não em medidas de austeridade”.
A Comissão Europeia também já sinalizou por várias ocasiões estar de acordo com essa suspensão, tendo em conta o contexto de pandemia que ainda se vive, mas ainda falta uma decisão definitiva.
Regras orçamentais discutidas no próximo semestre
Sendo praticamente certo que as regras orçamentais na Zona Euro vão ser uma vez mais suspensas, pouco se sabe, no entanto, sobre o que acontecerá a essas regras quando houver um regresso à normalidade. Paolo Gentiloni, o comissário europeu para os assuntos económicos, reconheceu na conferência de imprensa do Eurogrupo que a UE não tem conseguido fazer uma atualização dessas regras orçamentais — que ditam o esforço necessário em cada momento para controlar o défice e a dívida. E, admite ainda, tudo ficou ainda mais complicado com esta crise, uma vez que os estados-membros têm agora de lidar com maiores níveis de dívida pública e uma maior necessidade de investimento para relançar as economias.
O responsável europeu deixou a garantia de que os estados-membros vão “reabrir a discussão sobre regras orçamentais na segunda parte do ano, com a intenção de ter uma proposta no final do ano”, altura em que haverá “maior certeza” sobre o andamento da recuperação económica. E diz estar confiante de que o presidente do Eurogrupo, Paschal Donohoe, “ajudará na difícil tarefa de gerar consensos nesta matéria”.
Já a 2 de junho, haverá “orientações orçamentais” de Bruxelas “juntamente com o pacote de primavera”.
A Comissão Europeia pressionou também os cinco estados-membros que “ainda não ratificaram a decisão dos recursos próprios” da UE para que “o façam o mais rapidamente possível”. É que Bruxelas quer fazer os primeiros reembolsos “antes das férias de verão”.
Estão em causa Hungria e Áustria (em que os respetivos Parlamentos estão a analisar a proposta), os Países Baixos e a Polónia (em que a proposta já foi aprovada pelas câmaras baixas dos respetivos parlamentos, mas está sob análise dos senados), e a Roménia (que precisa de um acordo de dois terços numa reunião conjunta entre as duas câmaras do Parlamento).
O político italiano afirma ainda, tal como Lagarde, que as questões ligadas ao emprego são “um desafio imenso”, admite que “continuará a haver sequelas no mercado de trabalho” nos próximos tempos e pede que não haja uma retirada prematura das medidas de apoio.
Uma União Europeia de segunda divisão?
Quer a UE ser “relegada para a segunda divisão”, deixando os EUA e a China no principal escalão, ou quer “continuar a jogar na primeira divisão”? A pergunta de Bruno Le Maire, ministro das Finanças francês, foi uma nota dissonante nas declarações aos jornalistas à entrada do Eurogrupo. Bruno le Maire entende ser fundamental saber neste momento “em que divisão a Europa quer jogar no século XXI”, na medida em que vê um potencial de crescimento na UE maior do que aquele que se espera. Questiona, por isso, “se voltar aos níveis pré-crise é suficiente” e se a UE não deveria “fazer melhor”.
Mais tarde, na conferência de imprensa do Eurogrupo, Paolo Gentiloni responderia ao repto francês. O comissário defendeu que os estados-membros não podem ficar satisfeitos “simplesmente em voltar aos níveis de PIB de 2019”, apontando para a necessidade de “crescimento sustentável” e não apenas de um relançamento das economias.
Na mesma conferência, Paschal Donohoe, que substituiu Mário Centeno como presidente do Eurogrupo, disse que os ministros das Finanças da Zona Euro estão “confiantes no progresso” económico dos próximos tempos, mas “cautelosos quanto aos resultados finais”, tendo em conta os desafios que ainda subsistem e o trabalho que ainda há por fazer. Também o político irlandês colocou ênfase na palavra “sustentável” para descrever o tipo de recuperação económica ambicionada.
Já antes da reunião, o político irlandês disse acreditar que o processo de vacinação — que deverá abranger, pelas contas europeias, 70% de cidadãos até ao verão —, bem como a implementação de “medidas certas na Zona Euro para apoiar empregos e rendimento”, vão criar “as condições necessárias para um crescimento forte no segundo semestre do ano”.
Algo que deverá ser ainda melhorado pela execução dos planos de recuperação que estão a ser entregues a Bruxelas. Donohoe deixa elogios ao Governo de António Costa neste capítulo: “A presidência portuguesa fez um excelente trabalho a liderar esse processo”.