Era uma da manhã quando a juíza Maria Clara Santos finalizou o despacho com a decisão final: o julgamento de Pedrógão Grande ia mesmo começar dali a oito horas e meia. Só que, àquela hora, ninguém viu despacho nenhum. Por isso, dezenas de advogados, assistentes e arguidos deslocaram-se ao Tribunal de Leiria na manhã desta segunda-feira ainda na incerteza de que o julgamento arrancaria mesmo. É que Ministério Público tinha recorrido para o Tribunal da Relação de Coimbra porque não concordava com a designação classificação deste caso como “megaprocesso”. E, se este tribunal superior concordasse com o MP, teria de ser feito um novo sorteio para redistribuir o processo a outro coletivo de juízes. Assim, no entender do MP, mais valia não avançar com o julgamento do que correr o risco de uma decisão da Relação de Coimbra obrigar a repetir tudo e atirar por terra o que já tinha sido feito.

Foi isso que, vários advogados que foram entrando no Tribunal, foram manifestando em declarações aos jornalistas. Assim, após um atraso devido à greve dos funcionários judiciais, mais de 50 pessoas entraram sala de audiências adentro nessa incerteza. A juíza deu ordem para começar e, um a um, a procuradora e os advogados foram fazendo as suas exposições introdutórias. Nos breves discursos em que elencavam aquilo que procuravam provar para cada um dos seus clientes, iam deixando críticas à capacidade da sala — “Não estamos aqui nas melhores condições. É o possível, é a vida”, afirmou o advogado Rui Patrício — mas também ao facto de estarem a começar um julgamento sem saber qual era a decisão dos juízes: suspendê-lo ou não.

MP quer adiar julgamento do caso de Pedrógão Grande

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Mas logo que o primeiro advogado levantou essa questão, a juíza Maria Clara Santos lembrou-o que já tinha colocado o despacho onde anunciava a sua decisão na plataforma Citius. Qual era a decisão? Não disse. Na agitação que se foi criando na sala, os advogados iam acenando com a cabeça negativamente para demonstrar que ainda não tinham acesso ao despacho. Certo é que, só ao final da sessão da manhã, é que o despacho lá apareceu. E qual era então a decisão? A esperada: a de não esperar pela decisão da Relação de Coimbra, avançando com o julgamento, mesmo que ela obrigue a repetir tudo.

Os juízes que estão a julgar os onze arguidos à chegada ao tribunal. À frente, a presidente do coletivo, a juíza Maria Clara Santos (Nuno Brites / Global Imagens)

Face ao elevado número de advogados, as exposições introdutórias arrastaram-se para o período da tarde. A advogada que representa alguns familiares das vítimas vincou que o objetivo deste julgamento não era conseguir uma “vingança”, mas sim fazer com que “catástrofes desta natureza não se voltem a repetir”. Mas também o de “fazer o luto”.

Quem não concordou foi o advogado Rui Patrício, que representa os dois arguidos ligados à EDP: “Os julgamentos não servem para fazer o luto”, mas sim “para apurar factos” e a “responsabilidade concreta”. Já a advogada Filomena Girão, que representa o comandante de Bombeiros Voluntários de Pedrógão, Augusto Arnaut, pediu que “não” se vá “sacrificar este homem”, que considera ter sido tornado pela acusação num “bode expiatório”. “Naquele trágico dia, os meios foram poucos para travar aquele combate, que, sabemos agora, era impossível”, disse a advogada, defendendo que Arnaut não podia “ter feito mais e melhor”.

Terão falhado na limpeza de terrenos e impedido o corte da EN 236-1. De quem é a culpa da tragédia de Pedrógão Grande?

Já o advogado Manuel Magalhães e Silva, que representa o presidente de Pedrógão Grande, defendeu que “este julgamento foi pervertido desde o primeiro momento pela intervenção abusiva do Presidente da República e do primeiro-ministro, quando nos primeiros dias fazeram a afirmação bombástica que lesou a presunção de inocência” — “Todos os responsáveis serão severamente punidos”, recordou a afirmação, acrescentando que não se pôs “a hipótese de haver uma força maior”. “Durante anos a fio, o que tivemos foi um circo da procura dos responsáveis, sempre à revelia dos pareceres técnicos que davam nota que estávamos na presença de algo imprevisível”, disse, comparando os incêndios de Pedrógão a um tsunami. “E não passa pela cabeça de ninguém que seja possível combater um tsunami”, rematou.

Dos onze arguidos, só quatro vão falar: presidente de Pedrógão Grande fica em silêncio

Já a tarde ia longa quando terminaram as exposições introdutórias. Chegava o momento de centrar a atenção nos onze arguidos sentados lado a lado, ao longo de duas filas de bancos. Era preciso fazer-lhe questões sobre a sua identificação — as únicas a que são obrigados a responder — e descobrir se queriam ou não falar em tribunal. Dos onze arguidos, apenas quatro manifestaram essa vontade: os três arguidos ligados à concessionária Ascendi e Jorge Abreu, presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos. Os dois arguidos ligados à EDP, José Geria e Casimiro Pedro, não vão prestar declarações. O presidente da Câmara Municipal de Castanheira de Pera e as três pessoas ligadas à Câmara de Pedrógão — a engenheira florestal, o presidente e o vice-presidente — também vão ficar em silêncio.

O comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande ainda manifestou vontade em falar, mas acabou por recuar: Augusto Arnaut começou por contar que “tem sido muito difícil estar neste processo”, mas a juíza lembrou-lhe que devia falar sobre factos pelos quais foi acusado, levando-o assim a recuar. Cá fora, aos jornalistas, disse o que não pôde dizer lá dentro: que o dia 17 de junho de 2017 “irá perdurar” para o resto da sua vida. “Dei o meu melhor. Todos os bombeiros que tiveram comigo deram o seu melhor“, disse, afastando qualquer responsabilidade no desfecho trágico do incêndio.

O comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande (ao centro), acompanhado pela sua advogada (Nuno Brites / Global Imagens)

Lá dentro, neste que é o primeiro dia, só falou, José Revés, administrador da Ascendi à data do fogo. Ao tribunal explicou que a limpeza das faixas de combustível, nomeadamente, da EN 236-1 que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos Vinhos e que pertencia à concessionária “decorria da notificação das câmaras”. Notificação essa que “nunca” recebeu. “Não havia planos municipais contra incêndios. Não fomos notificados para a gestão das faixas de combustível. Era esse o entendimento da empresa”, disse, acrescentando: “Cumpríamos os planos de acordo com as notificações”. Ainda assim, quando a Ascendi passou a ter a concessão das estradas do Pinhal Interior providenciou uma faixa de cinco metros sem vegetação, nos limites dessas estradas, e não apenas os três metros que estavam antes — ainda assim, a acusação entendeu que essa faixa devia ter 10 metros.

A juíza, que até então não tornada a falar do despacho com a decisão de que o julgamento era para avançar, aproveitou para o comentar, em jeito de ironia. Pedindo a José Revés para tentar direcionar a voz para o microfone, disse: “Se não, não fica gravado. Aí é que temos a certeza que temos de repetir“.

Julgamento prossegue esta terça-feira na Exposalão, na Batalha

Além da greve de funcionários judiciais, o arranque do julgamento também foi marcado por alguns problemas com a sala de audiências escolhidas. Com mais de 50 pessoas, entre advogados, assistentes e arguidos, na sala, restavam apenas quatro lugares para jornalistas. Apesar de haver uma segunda sala onde é transmitido o áudio, alguns jornalistas recusaram entrar. A segunda sessão do julgamento é já esta terça-feira, mas num local maior: na Exposalão, na Batalha. Espera-se que sejam ouvidos os restantes arguidos que manifestaram vontade de falar.

Quase quatro anos depois dos incêndios — quatro anos onde cabe uma acusação do Ministério Público, uma fase de instrução e recursos para tribunais superiores —, onze arguidos começam a ser julgados no Tribunal de Leiria para serem julgados por centenas de crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física também por negligência.

Na lista de pessoas que vão a julgamento há dois responsáveis da EDP acusados de não terem acautelado a criação das faixas de limpeza junto a uma linha de média tensão — que teve uma descarga elétrica de causa não apurada que desencadeou o incêndio; cinco autarcas: três da Câmara de Pedrógão Grande, mas também de Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, a quem são apontadas falhas na limpeza dos terrenos junto a estradas; dois responsáveis da concessionária Ascendi Pinhal Interior acusados também de falta de manutenção das estradas; e um comandante dos bombeiros que, para a investigação e para os tribunais que decidiram levá-lo a julgamento, impediu a “salvaguarda daquelas povoações e populações”, tendo omitido informações que poderiam ter levado ao corte da estrada onde morreram 47 pessoas.