Pedro Passos Coelho acusou esta quarta-feira o Governo de António Costa de sofrer de uma “cegueira ideológica” que compromete o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Para o antigo primeiro-ministro, a esquerda, que se auto-considera a “alma matter” do SNS está, na verdade, a desqualificá-lo.

Mas foi o recado que deixou à oposição que obriga a leituras mais finas. Sem nunca referir o nome de António Costa ou Rui Rio, o antigo primeiro-ministro deixou uma frase que pode ser interpretada como uma crítica ao atual líder do PSD.

Rio tem dito e repetido que os socialistas não aproveitam a disponibilidade do maior partido da oposição para fazer reformas e tem acusado o atual primeiro-ministro de representar um país sistema imobilista e enquistado.

Passos até pode concordar com o diagnóstico, mas o antigo primeiro-ministro parece ter dado o passo em frente: se o PS não quer, terá de ser o PSD a liderar a discussão e a apresentar reformas concretas.

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“Bem sei que há muitas reformas que gostaríamos que fossem tão consensuais que durassem o suficiente para que se vissem resultados. Mas espero que as forças políticas não fiquem à espera uma das outras, o país não pode perder continuamente com este jogo”, continuou Passos, antes de concluir:

“Se tivéssemos de estar de acordo em tudo o que é essencial e só divergíssemos no acessório, também não era preciso fazer eleições nem mudar os governos”, rematou. Por outras palavras: o espírito de compromisso é importante, mas não chega como programa político, sugeriu o antigo primeiro-ministro.

O rumo errado na Saúde

Na sessão de apresentação do livro Um manual para a mudança na Saúde, apresentado pelo ex-primeiro-ministro no Campus de Campolide da Universidade Nova de Lisboa, Passos foi claro: a atual maioria está a conduzir a Saúde em Portugal para um “ponto de não retorno“.

“Seria imperdoável que a esquerda, que diz que é uma espécie de ‘alma mater’ do SNS o esteja a desqualificar desta maneira e que seja o que se chama de direita sempre a tentar salvar a situação e ver se lhe consegue dar sustentabilidade”, disse.

Pedro Passos Coelho começou por dizer que há uma cultura política instalada no país que impede grandes reformas estruturais uma vez que, com raras exceções, os governos estão mais preocupados na “gestão do poder e na sua própria sobrevivência do que propriamente nas reformas em que deviam estar concentrados”.

“Estamos a braços com problemas que se estão a avolumar e que exigiriam uma atitude muito diferente daquele que tem reinado. A atitude vigente tem sido ou de ignorar os problemas ou de relativizá-los, o que implica que muitas vezes os governos vêm empurrando com a barriga, esperando que as coisas se resolvam por si, ou às vezes aplicam-se mesmo em negar a realidade“, sublinhou Passos, dando como exemplos a questão da sustentabilidade da Segurança Social e, em particular, da Saúde.

Depois de passar em revista a evolução do Estado Social em Portugal no pós-25 de Abril, que coincidiu com fracos crescimentos económicos ou até crises cíclicas, Pedro Passos Coelho traçou o seu próprio diagnóstico sobre a Saúde em Portugal: um sistema público que sofre há décadas de “subfinanciamento crónico“, incapaz de se reinventar.

“Há aqui um paradoxo: como é que alguém pode considerar que o SNS funciona eficientemente se sendo universal, geral e tendencialmente gratuito, não consegue evitar que cada vez mais pessoas se dirijam às ofertas privadas gastando do seu próprio bolso. Alguma coisa aqui não está a funcionar bem. Não devíamos divergir quanto à realidade. Pelo menos. Se não estivermos a ver bem a realidade dificilmente encontraremos soluções que resolvam os problemas que temos”, sugeriu o antigo primeiro-ministro.

Numa crítica implícita à atual governação socialista, Passos lamentou que aqueles que têm uma “visão estatizante” da Saúde Pública sejam os mesmos que estejam a contribuir ativamente para a sua delapidação.

“Podemos estar a encaminhar-nos para um ponto de não retorno. Para a existência de dois sistemas autónomos, um público e outro privado. O privado para aqueles que têm melhores condições económicas; e um público, progressivamente descapitalizado, com serviços desestruturados, sem capacidade de atrair e de fixar quadros. É chocante que seja uma perspetiva estatizante daquilo que é o SNS quem está a empurrar o país para esta situação. É isto que está a acontecer.”

A crítica à Lei de Bases do Governo

Passos lançou-se depois à Lei de Bases desenhada pelo atual Governo. “Aqueles que têm uma visão mais estatizante do SNS, e portanto acham que o SNS deve, no essencial, não recorrer a mais ninguém… isto fica melhor escrito na Lei de Bases no que na prática. Em 2019, a Lei de Bases diz isto: só supletivamente, quando não houver capacidade, pontualmente, temporariamente, o Estado poderá recorrer à convenção com privados. Claro que isto está escrito mas não se vai fazer porque o Estado não tem simplesmente capacidade para satisfazer a procura”, sublinhou.

“E se aqueles que hoje recorrem ao privado tivessem de recorrer à oferta pública o sistema colapsava. Pura e simplesmente. Creio que pelo Ministério de Saúde se deve saber isto. O resto deve ser conversa política para ver se se agrada, se dizem umas coisas que tenham um certo impacto mais ideológico mas que enfrentam a dura realidade de que não é possível suprimir os privados da equação.”

Para o antigo primeiro-ministro, impõe-se uma atitude realista e não-negacionaista a quem governo. “Quem quer vê os problemas vê, quem quer atuar atua, quem quer reformar reforma. Quem não quiser que fique para trás no seu castelo, que fique a negar a realidade”, disse.

“Se o Governo que está em funções não os quer enfrentar, que venha um dia outro que os possa enfrentar, e se as reformas tiverem de se fazer em confronto que se façam, também é importante que a democracia funcione para isso.”