Uma empresa familiar, duas viagens a Milão e dois grandes almoços de família explicam o primeiro surto de Covid-19 em Portugal ainda antes de se imaginar que o coronavírus já circulava entre nós.
Os primeiros casos positivos para o SARS-CoV-2 foram detetados em Portugal a 1 de março. Ambos tiveram origem numa infeção fora do país — um homem de 33 anos que trabalhava em Espanha e um médico de 60 anos que regressou de umas férias em Itália —, mas as cadeias de transmissão que podem ter originado foram muito limitadas.
Caso diferente para a família e trabalhadores da fábrica de calçado em Lousada (distrito do Porto). Primeiro viajou o dono da fábrica com um cunhado, entre 16 e 18 de fevereiro, para uma feira de calçado, depois foi o filho do dono com outro cunhado do pai, entre 19 e 21 de fevereiro.
O cunhado que fez a segunda viagem foi o primeiro a ser diagnosticado com Covid-19, a 4 de março, cinco dias depois do início dos sintomas, e, por isso, considerado o “paciente zero” da cadeia de transmissão que se originou. Mas como os investigadores da Universidade de Porto e Hospital de São João vieram a demonstrar, este doente não infetou mais ninguém.
O paciente zero mais provável é, segundo os investigadores, o dono da fábrica, que teve sintomas logo no dia 23 de fevereiro, mas só foi diagnosticado a 8 de março. Na fábrica, houve, pelo menos, 14 pessoas infetadas, mas apenas três não tinham laços familiares com o dono ou com as pessoas que tinham ido a Milão.
Assim, três dos 54 trabalhadores que não eram familiares do dono e 11 dos 16 que faziam parte da família foram infetados com o coronavírus, concluiu a investigação liderada por Luísa Pereira, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, e Margarida Tavares, do Centro Hospitalar Universitário de São João.
Se a cadeia de transmissão passasse pelo local de trabalho, esperava-se que mais pessoas tivessem ficado infetadas. Por outro lado, houve dois grandes almoços familiares, com mais de 20 pessoas, no dia 25 de fevereiro, que pode ter estado na origem do contágio de cerca de 20 pessoas, incluindo pessoas dos círculos sociais e que não trabalhavam na fábrica.
“Os ajuntamentos sociais contribuíram, provavelmente, para a maioria das transmissões”, escreveram os autores num artigo publicado na revista científica Viruses no mês de junho.
O cunhado do dono, “acusado” de ser a causa do surto, foi ilibado pela investigação genética do vírus feita pela equipa do Porto. Mesmo os seus três amigos que estiveram infetados receberam o vírus de uma outra pessoa. Os investigadores sabem isto porque a sequência genética do vírus do cunhado do dono não foi encontrada em mais nenhum dos vírus analisados no âmbito deste surto.
O ‘acusado’ não infetou ninguém, uma vez que nenhuma das outras pessoas tinha a mesma variante do vírus”, confirmou a geneticista Luísa Pereira ao Público.
A equipa de Luísa Pereira destaca, no artigo, a importância de uma correta análise genética do vírus, sobretudo em situações de supertransmissão como neste caso: por um lado, permite perceber quais as características que transformam um indivíduo infetado num supertransmissor e, por outro lado, ajudar na prevenção e rastreamento de contactos.
Adicionalmente, uma correta identificação do paciente zero teria evitado o estigma e discriminação a que foi sujeita a primeira pessoa diagnosticada com a infeção que, afinal, nem sequer transmitiu o vírus a mais ninguém.