Ondas de calor na América do Norte, fogos na Sibéria e cheias na China, são alguns dos fenómenos extremos que têm colocado populações em risco nas últimas semanas. Dizer que são uma causa direta das alterações climáticas não é fácil — pelo menos não imediatamente. Mas não parece haver dúvidas que a ação do homem no planeta aumenta drasticamente a probabilidade de ocorrência destes fenómenos meteorológicos extremos.

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Temos de esperar mais uns dias para dizer se as cheias na Alemanha e Europa central foram resultado de um fenómeno influenciado pelas alterações climáticas, disse Pedro Matos Soares, investigador no Instituto Dom Luiz, em declarações à SIC Notícias. “Já temos modelos, e ferramentas estatísticas para análise desses modelos, que nos permitem calcular qual era a probabilidade de um fenómeno ocorrer com e sem a ação humana”, acrescentou o especialista em alterações climáticas.

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Não há dúvida que temos aqui a ocorrência de muitos extremos que vão de facto muito para lá da variabilidade climática que tínhamos”, disse Pedro Matos Soares.

O investigador usa dois exemplos recentes: a probabilidade de a onda de calor que atingiu os Estados Unidos e Canadá, no final de junho, foi aumentada 150 vezes pela ação humana; e a onda de calor na Sibéria de 2020 teve uma probabilidade de ocorrência 600 vezes maior por causa da ação humana. “A probabilidade de ocorrer sem ação humana era baixíssima.”

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Este ano, a Sibéria voltou a ser atingida por um evento sem paralelo: um incêndio que dura há cerca de um mês, representando a pior época de incêndios de que há memória, segundo o jornal The Guardian. O verão na região russa de Yakutia, uma das regiões mais frias do país, já foi descrito como o mais seco nos últimos 150 anos e isto depois de cinco anos de verões quentes. Só este junho, a temperatura média rondou os 20 graus Celsius, cinco graus acima média histórica para a região.

As populações junto à floresta apontam o desinvestimento nos serviços florestais, a má preparação do governo, origem criminosa dos incêndios, como alguns dos fatores que contribuíram para o problema, mas também percebem a ligação aos verões quentes e à crise climática, conforme reportou o jornal The Guardian.

Podemos ver como está a ficar mais quente, em Yakutia, de ano para ano. Estamos a viver o verão mais quente e seco da história das medições meteorológicas desde o final do século XIX”, disse Aisen Nikolaev, o líder da região, citado pelo jornal The Moscow Times.

Também no oeste dos Estados Unidos, as alterações climáticas são apontadas como o principal catalisador dos enormes incêndios que lavram em vários estados. No Oregon, o Fogo Bootleg, ainda não está dominado e já é o quarto maior incêndio da história do estado — e os 10 piores aconteceram todos nos últimos 20 anos. Mas tal como na Sibéria — ou em Portugal — um maneio florestal deficiente ainda agravaram mais a situação.

Numa área de florestas e zonas húmidas no Oregon, os ecologistas têm trabalhado para desbastar as árvores mais jovens e eliminar os consumíveis, incluindo com fogos controlados. É certo que isso não impediu que um incêndio desta dimensão atingisse o espaço, mas os bombeiros dizem que foi mais fácil de combater junto ao solo, porque havia menos labaredas a saltar entre os topos das árvores, reportou a agência Associated Press.

A intensidade do incêndio é tal que criou um fenómeno meteorológico próprio. Uma nuvem gigantesca de ar quente, fumo e humidade subiram alto o suficiente para criarem trovoadas e ventos fortes e não está descartada a hipótese de um tornado de fogo, alertou o jornal The New York Times.

Apesar de este ser o maior incêndio do ano nos Estados Unidos e se ser o maior de que muitos têm memória na região, os norte-americanos mais conservadores, mesmo com o fogo literalmente à porta de casa, recusam aceitar que as alterações climáticas são responsabilidade da humanidade e preferem culpar ambientalistas ou produtores de canábis, reportou o jornal The Washingthon Post.

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A dificuldade em aceitar que as alterações climáticas e o aquecimento global são causados pela ação do homem não é exclusiva dos Estados Unidos. Do outro lado do mundo, na China, os órgãos de comunicação social afetos ao governo tendem a mostrar o problema como não atingindo diretamente as suas populações, reportou a Bloomberg. As cheias dos últimos anos mostram, no entanto, que o impacto na população pode ser tremendo.

O Centro Nacional do Clima da China previu que, durante o resto do verão, o país iria enfrentar eventos climáticos mais extremos do que o normal, que a precipitação podia chegar a 50% mais do que o normal e que haveria grandes inundações, reportou a Bloomberg. Noutro momento, a mesma agência tinha referido que as temperaturas médias do primeiro semestre foram as mais altas desde 1961 e cerca de 1,2 graus Celsius acima dos níveis normais. Em nenhum momento foi feita uma associação às alterações climáticas.

Não temos permissão para enfatizar demais o perigo das alterações climáticas, o que seria irresponsável e causaria medos desnecessários”, disse um investigador do mais importante instituto de meteorologia chinês, que preferiu não ser identificado.

As cheias são o desastre natural mais frequente na China, referiam os autores de um artigo científico publicado na The Lancet, em 2020. Os investigadores da Universidade Monash, na Austrália, destacam, no entanto, que “as alterações climáticas podem alterar grandemente o risco de inundações em grandes escalas regionais e de tempo”. No ano passado, morreram mais de 270 pessoas por causa das cheias, este ano já morreram 25 pessoas e há milhares de desalojados.

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Na China como na Alemanha choveu muito mais num curto espaço de tempo do que seria esperado e isso Pedro Matos Soares não tem dúvida que pode ser causado pelas alterações climáticas. “Quando temos a atmosfera mais quente — e estamos num processo de aquecimento global, sem dúvida nenhuma — a atmosfera suporta mais vapor de água”, disse na SIC Notícias, explicando que “por cada grau de aquecimento da atmosfera, temos mais 7% de capacidade para reter vapor de água”.

“E o vapor de água não desaparece, é precipitado [transforma-se em chuva]. Há um balanço hidrológico mais ativo — isto não há dúvida”, rematou.