A leitura do acórdão do caso da morte nos Comandos estava marcada para esta segunda-feira, cinco anos após a morte de Dylan da Silva e Hugo Abreu. Todas as partes do processo já estavam dentro da sala do Tribunal de Monsanto, onde, a qualquer momento, era esperada a leitura do acórdão relativo à morte dos dois recrutas dos Comandos, em 2016. Mas problemas técnicos relacionados com o sistema de som impediram que a sessão avançasse.
Antes da leitura da decisão, os juízes preparavam-se para anunciar uma alteração não substancial dos factos da acusação — o que costuma indiciar uma decisão de condenação — e pretendiam fazê-lo numa audiência gravada. Só que os problemas técnicos impediram a gravação da sessão e o coletivo de juízes decidiu que vai comunicar essa alteração aos advogados dos arguidos e dos assistentes por despacho escrito, através da plataforma Citius.
Depois de notificados, os advogados terão um prazo de 10 dias para analisar cada uma das alterações e comunicar se têm novos elementos a apresentar — como a audição de mais testemunhas, por exemplo. Se o fizerem, a audiência de julgamento será reaberta para permitir esses depoimentos. Só depois serão marcadas novas alegações finais e a nova data para a leitura do acórdão. Caso não o façam, será marcada a data para a decisão final do caso.
Nas alegações finais, em maio, a procuradora do Ministério Público tinha pedido a condenação de cinco dos 19 arguidos a penas de prisão entre os dois e 10 anos, suspensas e efetivas, por crimes de abuso de autoridade com ofensa à integridade física, não só em relação à morte de dois instruendos, mas também a lesões graves sofridas por outros recrutas. Foi em relação ao instrutor dos Comandos Ricardo Rodrigues que pediu a pena maior — prisão efetiva até 10 anos. Quanto ao médico Miguel Domingues, pediu uma condenação a cinco anos de prisão. Quanto ao diretor da “Prova Zero”, tenente-coronel Mário Maia e os arguidos Pedro Nelson Morais, Pedro Fernandes e Lenate Inácio, a procuradora pediu uma pena suspensa de dois anos.
Recrutas morreram durante prova para testar limites do corpo de da mente
O 127º curso de Comandos arrancou, em setembro, com 67 instruendos. Na madrugada de 4 de setembro de 2016, os 67 foram levados para o Campo de Tiro de Alcochete e divididos em quatro grupos para dar início à chamada “Prova Zero”, uma prova que serve para testar os limites do corpo e da mente dos militares e afastar aqueles que não a conseguem superar. A prova começou à meia-noite.
Além de exercícios, a prova incluía agressões, castigos e privações. Uma delas, a “privação de água”, uma prática que o Exército garantiu desde o início que não tinha existido, mas que vários recrutas relataram na fase de inquérito. No final da marcha em ritmo médio, o grupo de Hugo Abreu, uma das duas vítimas mortais, pôde beber quatro tampas dos cantis que carregavam consigo. Já o grupo em que seguia Dylan Silva não estava autorizado a beber água.
Durante toda a madrugada, apenas os recrutas de um dos grupos tiveram direito a descanso: duas horas de sono. Os restantes foram obrigados a executar vários exercícios físicos. Só por volta das 6h20 da manhã, quando já estavam há seis horas na prova é que tiveram direito à primeira refeição: segundo a investigação, recrutas de alguns grupos comeram um pacote com cinco bolachas e uma dose de doce para acompanhar, sem poder beber água. Depois, tiveram 40 minutos de descanso, até às 7h00.
Pouco depois das 10h00, a temperatura já rondava os 32º e o primeiro recruta desmaiou. Depois dele, os soldados Godinho e Jorge Silva “vomitaram”, dando sinais de “exaustão pelo calor, que se manifesta por sede intensa, ansiedade, náuseas, vómitos e fadiga”, segundo a investigação. Mas esse cenário de desgaste generalizado não afetou o plano de instrução dos responsáveis do grupo e a prova continuou — com castigos: alguns recrutas foram até atirados para as silvas porque a sua prestação não tinha sido boa.
Nas horas seguintes, mais recrutas desmairam e queixaram-se de “sede, tonturas e falta de ar”. Ao final da manhã, as temperaturas já rondavam os 40º e os instruendos, sem direito a descanso e a beber água, continuavam a cair inanimados no chão. Alguns deles, pela segunda vez. As horas passavam e a temperatura ia aumentando. O chão fervia debaixo dos militares, com temperaturas entre os 44º e os 48º, segundo dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. O ar que os recrutas respiravam estava acima dos 40º.
Hugo Abreu, que acabaria por morrer, desmaiava ao início da tarde. Apesar de visivelmente debilitado, só quase duas horas depois é que foi levado para a enfermaria, mas os responsáveis pela investigação consideram que as próprias condições em que foi assistido não eram adequadas. Também Dylan Silva, já no limite, recebeu ordens para carregar a mochila do soldado Cardoso, mas foi incapaz de levantar-se devido às tonturas que sentia.
Às 16h00, além de Hugo Abreu e Dylan Silva, outros 20 instruendos do 127º Curso de Comandos estavam a soro na enfermaria quando o capitão Rui Monteiro tomou a decisão de suspender a instrução. O estado de saúde de Hugo Abreu e Dylan Silva ia piorando. Às 20h36, o primeiro teve uma paragem cardíaca. Só uma hora mais tarde, às 21h30, a ambulância do INEM com um médico e um enfermeiro, chega junto do militar. Minutos depois, o óbito de Hugo Abreu é declarado. Já Dylan Silva foi transferido para o Hospital do Barreiro nessa noite e, mais tarde, para o Hospital Curry Cabral. Acabaria por morrer no dia 10 de setembro. Ainda assim, na segunda-feira, dia seguinte à crise no Curso de Comandos, o diretor de prova deu ordens para a instrução fosse retomada.