Pouco a pouco, o Governo vai revelando os contornos do que poderá vir a ser o Orçamento do Estado este ano, com aparentes aproximações à esquerda. A novidade mais sonante terá sido, até ver, o desdobramento dos escalões do IRS, mas os partidos asseguram que, apesar de Costa ter referido que a medida estaria dependente das negociações, não negociou nem “conhece” a proposta. Do lado do PCP, que quer colocar o seu foco exclusivamente nas eleições autárquicas, essas conversas nem sequer estarão para breve: o partido garante que não tem “nenhuma reunião marcada” e que não se senta à mesa com o Governo desde julho.

O primeiro-ministro começou por levantar, em entrevista ao Expresso, o véu sobre o próximo Orçamento e as alterações no IRS: “É uma matéria sobre a qual não só estamos a estudar, como estamos a conversar com os nossos parceiros e temos de medir se e como”. Já esta segunda-feira, na TVI, foi mais longe: o objetivo será “mexer” no terceiro escalão, entre os 10 e os 20 mil euros de rendimento, e no sexto, onde se coloca quem recebe entre 36 e os 80 mil euros.

No entanto, e apesar de Costa ter assegurado que o Governo está a fazer um “trabalho muito sério” para avançar com a medida, os partidos com quem prometeu que iria negociar garantem ao Observador que essa negociação não existiu (pelo menos até agora). Do lado do Bloco de Esquerda, a resposta é clara: o Governo “não” apresentou a proposta nas reuniões setoriais que já existiram nos últimos dias.

O que terá acontecido, explicou fonte do Executivo ao Observador, terá sido uma auscultação dos partidos sobre as respetivas prioridades ainda na primeira leva de reuniões orçamentais, antes das férias de verão, em julho. A partir daí começou a trabalhar para aplicar o seu “programa de Governo” — a proposta genérica em relação ao IRS já constava do programa, mas ficara em stand-by no ano passado —, com “naturalidade”.

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Costa tem aproveitado este intervalo para anunciar medidas da iniciativa do Governo, ancorado nos milhões europeus, e mostrar sinais de aproximação à esquerda: no congresso do PS, entre IRS Jovem, algumas alterações laborais e apoios a famílias com filhos, adiantou propostas que os partidos receberam com cautela, por não fazerem parte da negociação. Entre as reivindicações do Bloco de Esquerda — que, das alterações às leis laborais à exclusividade no SNS, são as mesmas que apresentou no ano passado, antes de romper com o PS — e as que o PCP deixou, avisando que os anúncios de “milhões” não chegam para resolver o Orçamento, Costa sabe com o que conta. Mas, para já, avança sozinho.

BE quer mais informação, PCP não reúne já

Se do lado do Bloco de Esquerda o princípio da nova medida é bem visto — “o esforço foi sempre para voltar a desdobrar os escalões do IRS, para ter justiça fiscal”, dizia Catarina Martins, esta terça-feira, aos jornalistas — o partido encara de forma cética os anúncios de Costa sem negociação prévia. “O Governo ainda não anunciou nada que se compreenda exatamente. Diz que vai desdobrar escalões, muito bem, estava no seu programa e já vem com dois anos de atraso”, atirava, apontando que falta saber “montantes, impacto, quanto é que isso significa” — informações que não constaram das reuniões com a esquerda.

No PCP, o princípio também não é rejeitado — “em relação à política fiscal, qualquer avanço é sempre positivo”, concedia Jerónimo de Sousa esta terça-feira, embora lembrando que a “referência” do partido são “dez escalões” (com a proposta do Governo, os atuais sete seriam alargados para nove). Mas a negociação com os comunistas tem outros contornos. Ao Observador, fonte oficial do partido garante que o PCP “não conhece nenhuma proposta do Governo neste sentido”. E não estará para breve: uma vez que “o foco estar nas eleições autárquicas”, não há “nenhuma reunião marcada”.

Mais: a última conversa que juntou Governo e PCP terá sido em julho, como o Observador então noticiava “não houve nenhuma outra reunião depois dessa”. Por vários motivos: por um lado, os comunistas continuam a querer “relembrar que ainda há respostas de que o país precisa por concretizar no Orçamento do Estado de 2021” e não abdicam de fazer essa pressão e fiscalizar a execução do Orçamento em vigor, já que o viabilizaram, antes de passarem a falar publicamente do próximo. Sem as medidas que estão no papel passarem à prática, seria muito mais difícil para os comunistas justificarem a viabilização de um próximo Orçamento, para o seu eleitorado e para dentro do próprio partido, se assim o entendessem.

Por outro, o adiamento da negociação é uma resposta à opção do Governo de marcar as eleições autárquicas para dia 26 de setembro — uma escolha que Jerónimo de Sousa já veio dizer que “condicionou tudo” no que toca às negociações orçamentais, uma vez que o PCP não quer misturar os dossiês e preferiria remeter a discussão para o pós-eleições.

Jerónimo nas entrelinhas. As exigências orçamentais, as críticas aos “milhões” de Costa e a força para as autárquicas

Para mais, para os comunistas, a marcação para setembro (havia duas hipóteses mais tardias) veio mexer com a preparação da campanha, uma vez que ficou colada à montagem da Festa do Avante!, o maior evento anual do calendário do partido e aquele que aproveita para deixar recados ao Governo, incluindo o caderno de encargos orçamental. Desta vez, apesar de Jerónimo já ter avisado que só quer negociar a sério depois das eleições, voltou a fazê-lo. A seguir, será o tempo das eleições — a negociação orçamental seguirá dentro de momentos.