Uma exposição retrospetiva da obra “inquietante” do pintor, ilustrador e cartoonista João Abel Manta, “artista notável” que fez uma oposição a Salazar através dos seus desenhos políticos, é inaugurada na terça-feira no Palácio da Cidadela de Cascais.

Quase trinta anos depois da última grande exposição dedicada ao artista, a exposição “João Abel Manta: A Máquina de Imagens” vem recordar a obra deste criador, atualmente com 93 anos, que se exprimiu em múltiplos suportes, também na cenografia, tapeçaria e azulejaria, num talento que dominou desde o retrato ao cartoon.

Ainda hoje é surpreendente como é que um homem que tinha uma vida confortável e não frequentava grupos se lançou no cartoon de crítica política ao regime da ditadura, através dos jornais“, comentou o curador da exposição, Pedro Piedade Marques, durante uma visita guiada aos jornalistas.

Em centenas de obras, algumas inéditas, desde um pequeno núcleo de pintura a óleo, escolhido pela filha, Isabel Manta, fotografias de família, desenhos da juventude, colagens, ilustração de livros – como o “Dinossauro Excelentíssimo” (1972), fábula satírica de José Cardoso Pires que retrata a vida de Salazar e o Portugal do Estado Novo – várias séries de desenhos, alguns premiados, cartoons para jornais e revistas, o percurso expositivo vai revelando a obra a partir de 1940.

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Aos 18 anos, João Abel Manta já exibia “um talento notável” em retratos e desenhos elaborados num traço fino cujo conteúdo revelava “profundas preocupações sobre a violência de Estado”, notou o curador. Essa crítica política levou-o à prisão, aos 20 anos, em Caxias, onde passou duas semanas cativo.

A partir dos anos 1960, o trabalho de João Abel Manta é alvo de grande projeção depois de ter recebido um prémio de desenho, na primeira Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, com “O Ornitóptero”, chegando depois a expor cartazes em Londres.

Com uma obra influenciada pelo neorrealismo, o artista começa a destacar-se na área gráfica na imprensa periódica e não-periódica, sobretudo no último meio século da vida nacional, desde a queda de Salazar e a chegada de Marcello Caetano, ao final do período revolucionário.

Como desenhador, cartoonista e ilustrador, “o seu trabalho juntou uma prolificidade invejável à máxima qualidade artística e técnica, servidas por uma cultura ímpar e guiadas por um olhar ao mesmo tempo distante e próximo, irónico e terno, implacável e generoso, altivo e popular”, segundo Pedro Piedade Marques.

João Abel Manta não criticou apenas a ditadura política, mas outros tipos de violência, nomeadamente a do poder eclesiástico, “ele que era um republicano ferrenho”, patente em séries de desenhos como “Um caso para o Santo Ofício”, e “Situação Shakespeariana”, que podem ser vistas nesta exposição.

“Há sempre algo de inquietante nos seus desenhos”, comentou o curador, apontando que toda a obra é atravessada por uma grande diversidade de estilos, entre os quais saltava como queria, de forma fácil, conseguindo assumir-se totalmente na atividade de cartoonista, apesar do período da censura prévia.

No cartaz escolhido para a entrada da exposição é visível a crítica a um regime que “fez tudo para mostrar uma imagem bela de um país, escondendo a sua pobreza e miséria”.

Um pequeno núcleo da retrospetiva dá a ver a pintura do artista em seis telas a óleo, a maioria de retratos de figuras que admirava: a principal delas, a mulher, e outras que ainda o acompanham, como Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, o seu escritor de eleição, o pintor Vermeer e Mozart.

“O meu pai trabalhou toda a vida a ouvir a música de Mozart”, comentou a filha, Isabel Manta, na visita, acrescentando que agora, aos 93 anos, o que mais lhe interessa ainda é ler Eça e desfrutar da companhia dos netos e bisnetos.

Esta exposição é a primeira enquadrada num acordo de cooperação e parceria entre a Câmara Municipal de Cascais e a Presidência da República, visando o funcionamento, a manutenção e a utilização da Galeria de Exposições do Palácio da Cidadela de Cascais como polo cultural, que passa a estar integrado no perímetro do Bairro dos Museus.

A escolha de João Abel Manta para primeira figura a ser alvo de uma exposição dentro desta parceria é da iniciativa de Salvato Teles de Menezes, presidente da Fundação D. Luís I, gestora da programação do Bairro dos Museus.

“Esta exposição estava prevista para acontecer a 25 de abril, mas teve de ser adiada para o 05 de outubro”, indicou Teles de Menezes em declarações à agência Lusa, justificando a escolha de uma figura “com uma obra de grande abrangência criativa” no panorama político e social do século XX.

A exposição seguinte prevista para a galeria – avançou o responsável – em fevereiro de 2022, será dedicada ao trabalho de três fotógrafos sobre “A intimidade do poder”, nomeadamente Alfredo Cunha, com imagens dos ex-presidentes da República Ramalho Eanes e Mário Soares; Peter Souza, com fotos dos presidentes norte-americanos Barack Obama e Ronald Reagan, e Ricardo Stuckert, do presidente brasileiro Lula da Silva.

Até 16 de janeiro de 2022, a exposição “João Abel Manta: A Máquina de Imagens”, pode ser vista na Galeria de Exposições, no Palácio da Cidadela de Cascais.