Na “arca” de Fernando Pessoa, na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) existe uma peça sem título ou autor que tem uma lista de personagens encabeçada por João de Alemquer. Escrito assim mesmo, em ortografia antiga. Carlos Pittella, que se tem dedicado ao estudo do teatro do poeta, negligenciado durante muitos anos, descobriu a peça em 2014 e sempre se questionou sobre a autoria das 56 folhas de papel dactilografadas. Seriam de Pessoa ou de um dos seus heterónimos? Seria uma tradução?

Na sessão sobre o teatro de Pessoa no Congresso Internacional Fernando Pessoa, que decorreu ao final da manhã desta quinta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, o investigador brasileiro a residir no Canadá apresentou à distância as conclusões da sua investigação, quase policial, sobre as origens de Alemquer e a sua presença no espólio pessoano, onde não faltam mistérios e interrogações.

A “peça misteriosa” a que Pittella chamou João de Alemquer é composta por 56 folhas de papel amareladas pelo tempo, dactilografas em apenas um dos lados, em inglês e com poucas correções à mão, algo raro no espólio de Pessoa, o que levou o investigador a colocar a hipótese de o texto não ser da autoria do poeta, mas uma tradução, talvez feita diretamente à máquina. O texto não tem título, mas apresenta uma lista de personagens com nomes português, o que ajuda a sustentar a ideia de se tratar da tradução de uma peça portuguesa para o inglês.

[O congresso decorre de forma presencial na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, mas pode ser acompanhado online, aqui:]

Pittella partiu então à procura de João de Alemquer. “Quem seria?”, questionou. O investigador do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa acabou com uma lista de cinco “suspeitos”, autores e dramaturgos que Pessoa ou admirava ou em relação aos quais tinha mostrado a certa altura algum interesse: Carlos Lobo de Oliveira; Victoriano Braga; Antonio Patricio; João da Câmara; Castello de Moraes; e Afonso Gayo.

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Patricio, Câmara e Moraes surge mesmo num projeto de tradução de obras portuguesas para o inglês, que incluía vários autores portugueses e o próprio Fernando Pessoa, por exemplo, com os poemas de Alberto Caeiro. Mas Pittella não foi capaz de encontrar uma correspondência entre o drama “João de Alemquer” e estes nomes. O mesmo aconteceu com Carlos Lobo de Oliveira, apesar de um dicionário de pseudónimos indicar que terá utilizado o nome João de Alemquer para assinar certos textos, que o investigador não conseguiu confirmar.

E restou Afonso Gayo. “Gayo é citado num diário de 1913”, começou por dizer o responsável da edição crítica do Fausto pessoano, acrescentando que o autor se encontrou várias vezes com Pessoa na Brasileira, onde lhe mostrou as suas peças. Na biblioteca particular do poeta, à guarda da Casa Fernando Pessoa, existem exemplares de dois destes textos, com dedicatória para Pessoa. Um deles, Abel e Caim, corresponde à peça misteriosa, João de Alemquer.

“Pessoa traduziu a obra quase na totalidade para o inglês, provavelmente com a colaboração do próprio Afonso Gayo”, apontou Pittella, sugerindo que se devia “voltar a investigar todas elas pessoas, que são dramaturgos que formam uma espécie de constelação” do teatro modernista português e cuja obra poderá ter sido em parte eclipsada pela importância da obra pessoana.

O investigador Pedro Sepúlveda apresentou, ao final da manhã desta quinta-feira, algumas notas sobre as personagens pessoanas

Continuando no mundo do drama pessoano, Flávio Rodrigo Penteado, apresentou a partir do Brasil uma proposta de leitura dos dramas estáticos de Pessoa, que procura afastá-los do simbolismo e aproximá-los do modernismo português e estrangeiro, que desenvolveu na sua tese de doutoramento, Pessoa dramaturgo (tradição, estatismos, deteatrização).

Pedro Sepúlveda, investigador e professor na Universidade Nova de Lisboa, expôs algumas notas sobre as personagens pessoanas, defendendo que “a ideia de que o drama estático estaria na origem da heteronímia é algo precipitada”, do ponto de vista cronológico, mas também por se tratarem de obras distintas e por as personagens teatrais não serem autoras, ao contrário dos heterónimos.

“A ideia de que o drama estático estaria na origem da heteronímia é, a meu ver, algo precipitada também do ponto de vista cronológico, dado que a escrita das obras é em parte contemporânea (…). A persistência em procurar aproximar o drama estático e a heteronímia tem ainda por base a noção de um como subsidiário do outro, o que poderá ser, a meu ver, algo precipitada quando lidamos afinal com obras de teor tão distinto e desenvolvidas em paralelo”, afirmou o investigador, no auditório 2 da Gulbenkian.