No dia 15 de março de 2021, o Tribunal Constitucional (TC) considerou que o diploma que despenaliza a morte medicamente assistida é inconstitucional e deu razão às dúvidas apresentadas pelo Presidente da República, que vetou a lei e a devolveu ao Parlamento.

Era exatamente na Assembleia da República que se tinha de dar continuidade a um processo que se alongava há vários anos e que, com as questões levantadas pelo TC, teria de ser alterado para ser reenviado para Belém. A discussão aconteceu esta quinta-feira, em plena crise política, o que motivou duras críticas nas bancadas mais à direita do hemiciclo.

Isabel Moreira, do PS, uma das maiores impulsionadoras de todo o processo tomou a palavra para dizer que o diploma que estava de regresso ao Parlamento tinha sido “aprovado pela esmagadora maioria” dos deputados da Assembleia da República, “uma maioria inquestionável“, através de um “voto particularmente informado” por este ter sido um dos debates “mais longos, mais profundos, mais abertos e mais participados de que há memória”.

“Este é o momento da reapreciação de um decreto que entendemos devolver ao Presidente da República e a entidade que tivemos de escutar chama-se Tribunal Constitucional”, apontou pouco depois do início do discurso, num olhar para a postura do Palácio Ratton por ter ido “além do que lhe era requerido” e ter “feito questão de afastar as teses segundo as quais a eutanásia é inconstitucional por violação da vida humana”.

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A socialista explicou que os deputados se debruçaram nos conceitos e em “densificar” os mesmos “para ir ao encontro dos obstáculos de natureza jurídico-constitucional apontados”.

Também José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda, fez questão de recordar que o Tribunal Constitucional disse que “não há nenhuma inconstitucionalidade de princípio” na morte medicamente assistida. “O TC foi claro: o direito à vida não impõe um dever de viver e é legítimo que o legislador parlamentar despenalize a morte assistida em circunstâncias delimitadas.”

Foi, segundo o deputado, um trabalho de “aperfeiçoamento da redação para ir ao encontro das preocupações” do Constitucional. “Fizemos o que tínhamos de fazer em nome da responsabilidade e da ponderação com que sempre agimos neste longo e exigente processo”, atirou, para reiterar que este caminho abre “respeito pela dignidade de cada pessoa no final da vida”.

Seguiram-se o PAN, o PEV, a Iniciativa Liberal e as deputadas não-inscritas, todos a favor da eutanásia e de terminar o processo o mais rapidamente possível.

Bebiana Cunha subiu ao púlpito para lembrar quem estava no hemiciclo que ninguém se pode “arrogar-se ao direito de impedir a vontade expressa de uma pessoa pôr à fim à vida”.“A lei não pode ser moralizante, mas pode e deve ser justa”, argumentou, enquanto insistia na ideia de que “a justiça tem de servir e defender quem sofre, quem não tem cura para o seu estado clínico e quem, independentemente da opinião de terceiros, tem o direito a tomar decisões sobre a sua própria vida”.

Mais do que isso, a deputada lembrava a importância de assegurar que os cidadãos têm acesso a “alternativas existentes”, nomeadamente os cuidados paliativos. Ainda assim, assegurava a deputada, “não há justificação para a injustiça que estes sucessivos adiamentos trazem para a dignidade humana individual”.

Pel’Os Verdes, José Luís Carneiro garantiu que o Parlamento está “em condições de definitivamente concluir o processo legislativo”, mas voltou a lamentar que a proposta de limitar a aplicação da eutanásia ao SNS “não tenha merecido consenso”. O deputado argumentava que “há matérias que devem estar fora do alcance do privado” e está certo de que esta “era uma delas”.

João Cotrim Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal, o único partido à direita que apoia a eutanásia — o PSD dá liberdade de voto, mas as opiniões divergem — insistiu na necessidade de dar liberdade de escolha em todas as circunstâncias: “Não é fácil confrontarmo-nos com a nossa finitude, mas a decisão do fim deve ser nossa, porque a vida do início ao fim é aquilo em que acreditamos e o que fazemos de forma livre, informada e consciente.”

As deputadas não-inscritas também vão manter o sentido de voto nesta matéria. Joacine Katar Moreira voltou a defender que a morte medicamente assistida é inevitável para uma “vida digna”, devendo este processo ser visto, aos olhos da ex-deputada do Livre, como um “marco civilizacional de profundo respeito pela liberdade humana”.

Cristina Rodrigues também saiu em defesa dos direitos, mas foi mais longe para dizer que as críticas feitas a este agendamento, em plena crise política, “têm um fundamento moral e religioso”.

Direita contra agendamento apressado antes da dissolução do Parlamento

No tom mais efusivo que se ouviu ao longo do debate, Telmo Correia acusou os parlamentares de terem formado “nova geringonça” para fazer aprovar a revisão do diploma vetado pelo Constitucional em março e aprová-la antes da dissolução da Assembleia da República.

Com o voto contra anunciado do PCP, Telmo Correia acusou a Iniciativa Liberal ter substituído os comunistas na geringonça e, à semelhança do Chega, deixou críticas ao facto de as alterações introduzidas não terem sido apresentadas a entidades externas. O democrata-cristão acabou a prometer “não desistir” do tema, seja recorrendo novamente ao Tribunal Constitucional, seja na próxima legislatura.

André Ventura, por sua vez, aproveitou a oportunidade para pedir o reforço da bancada do partido que lidera para garantir a “reversão da legislação na próxima legislatura”.

Ainda na direita, o PSD que dará novamente liberdade de voto à bancada não se coibiu de criticar aquilo que diz ser uma “imprudência” ao legislar a eutanásia no “frenesim de última hora”. “É agora, na 25.ª hora, no momento em que está visto o fim da atual legislatura que são apresentadas propostas de alteração”, criticou o líder parlamentar dos sociais-democratas acrescentando que “não estão reunidas as condições de prudência, serenidade e rigor necessárias e indispensáveis”.

“Temos medo físico da direita”. As farpas entre Isabel Moreira, PSD e CDS

Na fase final do debate, Isabel Moreira atirou-se à direita e teve respostas por parte dos líderes parlamentares do PSD e do CDS. Depois de se justificar sobre o tempo que o diploma demorou a ser reapreciado, a deputada socialista admitiu “ter pena de ver deputados do PSD e CDS desprestigiarem o Parlamento desta forma porque sabem que é assim que se processa estes momentos parlamentares”.

“Quanto à 25.ª hora, eu e todas as mulheres temos medo físico da direita em que vocês se transformaram. 25.ª hora foi no último dia da vossa legislatura, transformarem em pó uma lei legitimada por um referendo e atirarem-nos para o perigo do aborto clandestino e da prisão”, atirou a deputada, pedindo “um pouco de decência”.

As palavras caíram mal as palavras à bancada social-democrata e Adão Silva pediu a palavra para lembrar que o “PSD foi um dos partidos construtores da democracia”. “O Parlamento não pode aceitar as palavras exasperadas, sem sentido e desregradas de Isabel Moreira. Mais tolerância e menos arrogância fica-lhe bem”, respondeu o líder da bancada, acrescentando que Isabel Moreira “não está em condições de suprir a liberdade a nenhum dos deputados”.

Seguiu-se Telmo Correia, que pediu a defesa de honra da bancada para dizer que a deputada “teria obrigação de saber da história deste Parlamento e da bancada [do CDS] para não fazer esse tipo de considerações”. “Não tenha medo, somos pessoas de bem, democratas e pessoas serenas. Nós é que temos medo do que desprestigia este Parlamento: o radicalismo e secretismo com que fizeram este processo”, realçou, ao alertar que é “inaceitável” que os deputados tenham “conhecido o texto há poucas horas”.

PSD e CDS não ficaram sem resposta. Isabel Moreira recusou ter “ofendido outras bancadas” na intervenção anterior: “Os deputados estão cá há muitos anos, sabem como se processa a revisão de um diploma quando é devolvido”, repetiu.

“Quando digo que desprestigiam o Parlamento não sei em que ofende as bancadas, estou a sublinhar o facto de dizer que é feito às escondidas”, disse a socialista, justificando o “medo físico” que diz ter ganhado da “direita”: “Quando no último dia desta legislatura deram cabo de uma lei [do aborto] que tinha base referendária, sim senti medo físico.”