Quando no final da manhã desta quarta-feira, o presidente da COP26, Alok Sharma, começou um discurso em Glasgow afirmando que continua esperançoso de que a cimeira acabe a tempo e horas na sexta-feira, uma parte dos delegados presentes no centro de congressos da cidade escocesa não evitou uma gargalhada.
Com efeito, negociar um acordo para ser assinado por perto de 200 países é um desafio de uma complexidade dificilmente igualável. Numa altura em que faltam apenas dois dias para o fim oficial da COP26 (que deverá terminar ao fim da tarde de sexta-feira), o Reino Unido, anfitrião da cimeira do clima de Glasgow, está a usar a sua máquina diplomática para tentar que o resultado da conferência não seja a desilusão que muitos vaticinaram ainda antes do seu início.
A medida do sucesso da cimeira de Glasgow será a capacidade que os cerca de 40 mil delegados enviados por países e organizações tiverem para alcançar um acordo que cumpra os principais objetivos traçados para a COP26: garantir que os países aumentam a ambição das suas políticas climáticas; assegurar que os signatários do Acordo de Paris começam a rever as suas metas climáticas mais frequentemente (todos os anos, e não de cinco em cinco anos como agora acontece); firmar compromissos concretos de corte de emissões de gases de efeito de estufa no curto prazo; e mobilizar as maiores economias do mundo para que contribuam de modo considerável para pagar a elevada conta da transição energética aos países que não o conseguem fazer (o objetivo de 100 mil milhões de dólares por ano a partir de 2020 falhou, estando agora apontando para 2022 ou 2023).
A primeira semana da COP26 ficou marcada pelo otimismo associado aos anúncios sucessivos de acordos, compromissos e declarações globais: a neutralidade carbónica da Índia, a desflorestação, o metano, o carvão, a inovação agrícola e o regresso dos EUA à mesa das negociações. Ainda nos primeiros dias da cimeira, alguns estudos científicos contribuíram para o otimismo: a Universidade de Melbourne estimou que os compromissos assumidos em Glasgow limitariam o aquecimento global a 1,9ºC até ao fim do século; a Agência Internacional de Energia colocou o valor nos 1,8ºC.
Pareciam motivos para estar otimista. Antes da COP26, a comunidade científica estimava o aquecimento global até ao fim do século em 2,7ºC, muito acima do objetivo do Acordo de Paris — manter o aquecimento global abaixo dos 2ºC e, se possível, em torno dos 1,5ºC. Chegar aos 1,8ºC com uma única cimeira seriam ótimas notícias para o Reino Unido.
Esta semana, o otimismo começou a dar lugar ao pragmatismo e a cimeira de Glasgow parece encaminhada para o mesmo rumo de várias outras que a antecederam: as negociações vão arrastar-se para lá da data limite e o resultado final ficará aquém das expectativas. Para quem está a acompanhar o processo negocial e a redação do texto final, a evidência levou ao riso quando Alok Sharma prometeu que a cimeira acabaria a tempo e horas.
Primeiro foi a divulgação, na terça-feira, do relatório do prestigiado centro científico Climate Action Tracker (CAT), que estimou o aquecimento global em 2,4ºC até ao final do século — mesmo já contando com os compromissos de Glasgow. Esta quarta-feira, as fragilidades do complexo processo negocial começaram a vir ao de cima, num dia marcado pela divulgação do primeiro esboço daquele que poderá vir a ser o documento final da cimeira.
Trata-se de um documento com apenas seis páginas e 71 pontos divididos por oito secções: ciência; adaptação; financiamento da adaptação; mitigação; a colaboração entre países desenvolvidos e em desenvolvimento para o financiamento e a tecnologia para a mitigação e a adaptação; a gestão das perdas e dos danos causados pelos efeitos inevitáveis do aquecimento global; a implementação das medidas; e a colaboração internacional.
Ainda assim, o esboço inclui algumas propostas ambiciosas.
Por um lado, é feito um apelo a todos os países signatários do Acordo de Paris a para que realizem anualmente uma reunião de alto nível destinada a aumentar a ambição das metas climáticas (atualmente estas reavaliações são feitas a cada cinco anos). Além disso, os países devem aumentar os seus compromissos de curto prazo até ao final de 2022. O texto apela ainda explicitamente aos países para que “acelerem a descontinuação do carvão e dos subsídios aos combustíveis fósseis“, uma referência inovadora que o jornal britânico The Guardian classifica como “potencialmente o primeiro reconhecimento num tratado da ONU do papel central dos combustíveis fósseis na crise climática”.
O esboço, divulgado pela presidência britânica da COP26, reconhece que o planeta vive atualmente uma “década crítica” em que será necessário resolver os grandes desfasamentos existentes entre os atuais compromissos e políticas climáticas e aquilo que é necessário fazer para garantir que os objetivos do Acordo de Paris são cumpridos. Além disso, “expressa alarme e preocupação” com o facto de a ação humana já ter provocado um aquecimento de cerca de 1,1ºC desde a era pré-industrial até aos dias de hoje, estando o planeta encaminhado para um aquecimento muito acima dos objetivos definidos em Paris.
Concretamente, o esboço do documento final da COP26 salienta a necessidade de reduzir as emissões em 45% até 2030 em relação aos níveis de 2010 e atingir “neutralidade carbónica líquida” em meados do século.
Apesar das propostas ambiciosas, o documento foi criticado por várias associações ambientalistas por conter poucos avanços significativos e, sobretudo, porque a linguagem é pouco ambiciosa: há a “preocupação”, o “objetivo”, o “trabalhar no sentido de” — mas poucas ações concretas.
Ainda assim, a referência à descontinuação dos combustíveis fósseis causou sobressalto na Arábia Saudita. O país árabe, que é um dos maiores produtores e exportadores de petróleo do mundo (e que obtém mais de metade das suas receitas através da exploração petrolífera), vê o seu modelo económico fortemente ameaçado por um tratado das Nações Unidas que mencione explicitamente a necessidade de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis de circulação.
Por isso, os negociadores sauditas presentes na COP26 têm tentado bloquear, obstruir e adiar os entendimentos na cimeira de Glasgow, de acordo com uma notícia publicada esta quarta-feira pela Reuters. A agência refere que vários negociadores envolvidos nas discussões deram conta de como a delegação saudita tem usado várias tácticas negociais, incluindo expedientes burocráticos, para boicotar a inclusão do combate aos combustíveis fósseis no documento final.
Todavia, a Arábia Saudita nega que o esteja a fazer. O país, que recentemente se comprometeu a alcançar a neutralidade carbónica até 2060, foi representado esta quarta-feira na COP26 pelo ministro da Energia, o príncipe Abdulaziz bin Salman, que assegurou que as informações veiculadas pela Reuters não têm fundamento.
“É imperativo reconhecermos a diversidade das soluções climáticas e a importância de reduzir as emissões, como estipulado no Acordo de Paris, sem qualquer preconceito a favor ou contra uma fonte de energia em particular“, disse o governante saudita na cimeira. “Aquilo que têm ouvido são alegações falsas, calúnias e mentiras”, disse ainda, depois de apelar ao trabalho em conjunto para ajudar os países menos desenvolvidos “a mitigar o impacto das alterações climáticas sem comprometer o seu desenvolvimento sustentável”.
Esta quarta-feira, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, aproveitou a viagem de comboio entre Londres e Glasgow para telefonar ao príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, para debater “a importância de avançar nas negociações nos últimos das da COP26”, de acordo com informações oficiais divulgadas pelo governo britânico.
Boris Johnson viajou de comboio para Glasgow depois de ter gerado polémica na semana passada ao viajar de Glasgow para Londres num jato privado após discursar em defesa do clima na abertura da COP26. Johnson regressou a Glasgow para a fase final da cimeira com o objetivo de incentivar os líderes mundiais e as equipas negociais a intensificar os esforços no sentido de evitar que a cimeira seja um fracasso.
Afirmando que o mundo nunca esteve tão perto de chegar à solução para as alterações climáticas como está hoje, Boris Johnson pediu aos delegados nacionais que negoceiem e aos líderes mundiais que facilitem ao processo, dando mais espaço aos seus negociadores para fazer mais cedências e para serem mais ambiciosos. Johnson foi mais longe e disse que, se a cimeira de Glasgow não for capaz de produzir um acordo ambicioso e eficaz, será recordada como um grande falhanço num momento crítico para a humanidade.
Por isso, o primeiro-ministro foi explícito no apelo aos líderes mundiais para que “peguem no telefone, falem com as suas equipas que estão aqui para lhes dar margem de negociação e o espaço de manobra de que precisam para concluir isto”. “Aqui em Glasgow, o mundo está mais perto do que alguma vez esteve de dar um sinal para o início do fim das alterações climáticas antropogénicas”, afirmou Johnson, acrescentando que “esse é o melhor presente que poderemos deixar aos nossos filhos, netos e gerações por nascer.“
“Por isso, a minha questão para os meus colegas líderes mundiais esta tarde, quando entramos nas últimas horas da COP, é: vão ajudar-nos a fazer isso? Vão ajudar-nos a aproveitar esta oportunidade? Ou vão ficar no caminho?” “O mundo vai achar absolutamente incompreensível se não conseguirmos alcançá-lo“, rematou Boris Johnson.
Apesar dos avanços e recuos no processo negocial, o presidente da COP26, Alok Sharma, continua convicto de que é possível chegar a um acordo significativo até sexta-feira. Numa intervenção perante os delegados que estão a protagonizar as negociações, Sharma explicou que ainda na noite desta quarta-feira iria começar a revisão dos documentos, esperando-se que os “textos quase finais” fossem publicados durante a noite, ficando disponíveis na manhã de quinta-feira — dia em que deverá haver um plenário de negociadores, por volta das 11h, já com o texto final em cima da mesa.
Já depois da conclusão dos trabalhos oficiais da COP26 nesta quarta-feira, a China e os EUA anunciaram um grupo de trabalho em conjunto destinado a intensificar a ação climática. Numa conferência de imprensa em Glasgow, o porta-voz do governo chinês para as questões do clima, Xie Zhenhua, anunciou que os dois governos têm vindo a reunir-se desde o início do ano e, após 30 reuniões, chegaram a um acordo. Os dois países querem trabalhar em conjunto numa série de assuntos, incluindo o financiamento da política climática a nível global.
A China e os EUA, que são os maiores poluidores do mundo, vão constituir um grupo de trabalho conjunto para começar a trabalhar no primeiro semestre de 2022, com o metano, a descarbonização e a desflorestação no topo da agenda.
O dia em que Portugal subiu, finalmente, ao púlpito na COP26
Paralelamente ao intenso debate negocial em torno do acordo final da COP26, esta quarta-feira ficou ainda marcada por dois outros acontecimentos. Um deles foi a já anunciada assinatura de um acordo entre 24 países e várias empresas e fabricantes de carros (mas sem a participação dos maiores mercados automóveis do mundo, EUA, China e Alemanha, nem das duas maiores fabricantes, Toyota e Volkswagen) com vista ao fim da produção e venda de carros a combustíveis fósseis. Sem a presença dos principais agentes do setor, é ainda pouco claro qual o verdadeiro impacto desta declaração.
O outro acontecimento que marcou esta quarta-feira foi a estreia de Portugal na COP26, com um discurso do ministro do Ambiente e Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, no plenário da cimeira, depois de António Costa ter faltado à sessão inaugural onde falaram chefes de Estado e de Governo. Matos Fernandes subiu ao palco para apresentar Portugal como um exemplo para o mundo no que toca ao combate às alterações climáticas e apelou aos líderes de todo o mundo que aumentem a ambição das suas políticas ambientais.
“Só há um resultado aceitável para a COP26. Um que comprometa todas as partes a um mais elevado nível de ação e ambição climática. Um que finalize o manual para a implementação total do Acordo de Paris”, disse Matos Fernandes na abertura do seu discurso em Glasgow, na segunda parte da fase de alto nível das negociações da COP26.
“É necessário ouvir a ciência e integrá-la nos processos de planeamento e de tomada de decisão a nível nacional, regional e local. Para isso, as contribuições determinadas nacionalmente e as estratégias de longo prazo deverão refletir a urgência de alcançar o objetivo de 1,5ºC, através de ações de curto prazo ambiciosas e através de compromissos de neutralidade carbónica até meados do século”, acrescentou.
Matos Fernandes prosseguiu depois dando exemplos de como Portugal lidera nos esforços climáticos: “Portugal foi o primeiro país do mundo a comprometer-se com a neutralidade carbónica até 2050. A União Europeia fê-lo quando assumiu o objetivo de chegar à neutralidade carbónica até 2050 e de chegar a emissões negativas a partir daí, através de uma Lei do Clima aprovada durante a presidência portuguesa da UE.”
“A liderança é daqueles que começaram a descontinuar o carvão, que puseram um preço no carvão, que recusaram investimentos em combustíveis fósseis, que investiram em energias renováveis e na criação de resiliência climática, territórios biodiversos, com capacidade de capturar dióxido de carbono através de soluções naturais”, afirmou o ministro.
No final deste mês, Portugal vai acabar com a produção de eletricidade a carvão”, acrescentou.
“Em 2020, reduzimos as nossas emissões em 32% em relação a 2005, e mais de 60% da nossa eletricidade foi baseada em energias renováveis. E vamos continuar a investir em energias renováveis, especialmente em energia solar. Estes investimentos estão a ser complementados com projetos baseados no hidrogénio verde.”
Matos Fernandes terminou o discurso citando estudos científicos recentes que apontam para a insuficiência das políticas climáticas e compromissos atualmente assumidos e pediu: “Quanto mais adiarmos a ação climática, mais intensos vão ser os seus efeitos. E maiores serão os custos da inação.”