Primeiro foi Joe Biden. Depois, o ex-secretário de Estado John Kerry. De seguida, um regresso de Barack Obama. E agora a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Todos passaram pela cimeira do clima de Glasgow (COP26) com a mesma mensagem: America is back.

Depois de quatro anos com Donald Trump à frente da Casa Branca, os Estados Unidos querem voltar a ser os líderes do mundo numa série de tópicos — com o combate às alterações climáticas à cabeça —, e a COP26 está a ser o palco privilegiado para Washington usar todo o seu poder político e diplomático para veicular essa mensagem.

Porém, nos bastidores, a mensagem não é a mesma, com os EUA ainda longe de um compromisso sério com o combate às alterações climáticas e as questões políticas internas a impedirem o país de se comprometer a fundo com algumas das decisões mais importantes da COP26.

“Queremos demonstrar que EUA não estão apenas de volta à mesa [de negociações], mas vão liderar com o poder do exemplo”, afirmou Biden quando se dirigiu pela primeira vez à COP26, no arranque cimeira de líderes de Glasgow. Mais recentemente, o ex-secretário de Estado dos EUA John Kerry, que é o enviado especial de Biden para os assuntos do clima e um dos principais negociadores norte-americanos na cimeira, reconheceu que a atuação de Donald Trump, em conflito com a própria ciência, causou graves danos à reputação internacional dos Estados Unidos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O mesmo fez Barack Obama, que na segunda-feira protagonizou o momento de maior euforia de toda a cimeira, atraindo milhares de pessoas ao centro de congressos de Glasgow para verem o discurso de um dos arquitetos do Acordo de Paris. O ex-presidente dos EUA subiu ao púlpito para um longo e entusiasmado discurso em que assumiu que “algum do progresso estagnou” durante os anos de Donald Trump, mas garantiu: “Os EUA estão de volta” à ação climática “e preparados para assumir um papel de liderança“.

Barack Obama atraiu multidão à COP26 para elogiar jovens ativistas e garantir que, depois de Trump, os EUA estão de volta à ação climática

Esta terça-feira, os EUA voltaram em peso à COP26, com a chegada a Glasgow de uma nova delegação composta por cerca de duas dezenas de congressistas do Partido Democrata (que se juntaram à delegação já numerosa e de alto nível, que inclui a presença de 13 membros da administração). A nova delegação incluiu nomes de peso, incluindo a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e a destacada congressista Alexandria Ocasio-Cortez. Ambas usaram da palavra na COP26 esta terça-feira para variações do discurso “America is Back“.

“A América está de volta, juntos pelo planeta, pelas mulheres e pelas nossas crianças”, assegurou Nancy Pelosi num painel sobre a igualdade de género e o clima. Alexandria Ocasio-Cortez, por seu turno, salientou que os EUA “ainda não recuperaram a autoridade moral” para liderar o planeta no combate às alterações climáticas na sequência dos anos de Donald Trump, pelo que o discurso de que a América está de volta tem de ser acompanhado por ações climáticas concretas.

Mas a verdade é que os Estados Unidos já chegaram a Glasgow com sérias dificuldades em implementar uma agenda climática fora de portas.

Depois de Donald Trump ter rasgado o Acordo de Paris em 2017, o ainda candidato Joe Biden fez do regresso ao pacto climático mundial uma das principais bandeiras da sua candidatura — e até formalizou a segunda adesão norte-americana ao acordo nas primeiras horas da sua presidência, em janeiro de 2021. Além do simbólico, Joe Biden pôs em pouco tempo em marcha um plano político de combate às alterações climáticas que incluía um investimento público estimado em 2 biliões de dólares — para reforçar os compromissos ambientais dos EUA e a alinhar novamente o país com os objetivos climáticos internacionais.

Para reafirmar os EUA como líderes globais da luta climática, nada como a cimeira de Glasgow — uma COP de especial importância, uma vez que coincide com a primeira reavaliação quinquenal dos compromissos climáticos dos signatários do Acordo de Paris — para Joe Biden subir ao púlpito e assegurar que os tempos de Trump ficaram para trás e que os EUA estão de volta. Contudo, Joe Biden aterrou em Glasgow já com a credibilidade ameaçada, uma vez que poucos dias antes o seu plano político havia colapsado no Congresso depois de uma das medidas centrais do programa — as políticas de substituição da eletricidade produzida a carvão e a gás natural por sistemas eólicos e solares — ter sido chumbada no Congresso.

Tudo por causa de um senador do próprio Partido Democrata, que desequilibrou a votação num Senado atualmente dividido ao meio (50 democratas e 50 republicanos) e votou contra. Joe Manchin, um democrata da Virgínia Ocidental, um estado fortemente dependente da economia do carvão, votou contra e obrigou o governo norte-americano a esboçar um plano B para apresentar em Glasgow.

Os EUA não pouparam esforços e mobilizaram praticamente toda a máquina diplomática para defender em Glasgow a vocação de liderança do país. Porém, à mesa das negociações, Washington tem ficado para trás em vários dos compromissos mais importantes e a capacidade dos EUA para efetivamente influenciar a ação climática está a ser fortemente questionada.

Apesar de ter estado no centro dos dois primeiros acordos alcançados na COP26 (um deles destinado a travar a desflorestação até 2030 e outro a cortar as emissões de metano em 30% até ao fim da década), Biden ficou de fora do acordo que prevê a descontinuação da produção de eletricidade a carvão até ao final da década de 2040. A ausência dos EUA, da China, da Índia e da Austrália do acordo, que incide sobre um dos principais tópicos da luta contra as alterações climáticas, cria dúvidas sobre a real eficácia deste documento.

Já esta terça-feira, soube-se que os EUA também estão a resistir a assinar um acordo destinado a eliminar as novas emissões de dióxido de carbono com origem nos automóveis a partir de 2040, e a partir de 2035 nas economias mais desenvolvidas. Trata-se, na prática, de um acordo que pretende que a partir desse ano deixem de ser vendidos automóveis movidos a combustível fóssil (mantendo-se em circulação apenas os carros vendidos até lá). Todavia, algumas das principais marcas de automóveis do mundo, incluindo a Volkswagen, a Toyota e a BMW, não deverão assiná-lo — e dizem que um dos motivos para isso é a ausência do acordo de países como os EUA ou a China. Segundo o Financial Times, que avançou a notícia, Joe Biden estará preocupado com o impacto de uma decisão destas na política interna, motivo pelo qual ainda não se comprometeu com uma decisão final. Ainda assim, fontes das negociações assumiam que até ao fim do processo Biden ainda poderia assinar o acordo.

Novo relatório contradiz otimismo da cimeira

Com ou sem EUA, o que é certo é que a primeira semana da COP26 ficou marcada pelo otimismo, sobretudo à boleia de dois estudos que estimaram que os compromissos assumidos na cimeira poderiam conduzir a um aquecimento do planeta, até 2100, de 1,8ºC ou 1,9ºC em relação aos valores da era pré-industrial — um número consideravelmente abaixo dos 2,7ºC estimados antes da cimeira de Glasgow, já em linha com o primeiro objetivo do Acordo de Paris (manter o aquecimento abaixo dos 2ºC), mas ainda longe do objetivo ideal dos 1,5ºC.

Para uma cimeira que parecia condenada ao fracasso desde o primeiro minuto, estes números afiguraram-se como um sucesso considerável.

Todavia, um importante relatório publicado esta terça-feira caiu como um balde de água fria na COP26. De acordo com uma análise do prestigiado centro científico Climate Action Tracker (CAT), o planeta encaminha-se para chegar ao final do século 2,4ºC mais quente do que estava na era pré-industrial, um aquecimento que fica bem acima dos objetivos declarados do Acordo de Paris. O CAT, uma organização global independente de cientistas e institutos de investigação, tem sido há mais de uma década responsável por algumas das mais precisas análises às políticas climáticas.

O CAT considera, ainda, que a COP26 tem “um enorme problema de credibilidade, ação e compromisso” e que os acordos alcançados durante a cimeira de Glasgow estão longe de serem suficientes para garantir que os objetivos cruciais do Acordo de Paris são cumpridos. Concretamente, o relatório do CAP calcula que em 2030 as emissões de gases com efeito de estufa ainda vão ser o dobro daquilo que deveriam ser para que o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5ºC fosse alcançável.

Vários importantes líderes mundiais advertiram esta terça-feira em Glasgow que as metas de Paris estão ainda longe de serem cumpridas.

Uma delas foi a responsável da ONU pelo combate às alterações climáticas, a diplomata mexicana Patricia Espinosa, que assumiu à BBC que ainda há um desfasamento entre o que é necessário para atingir os objetivos do Acordo de Paris e aquilo que já foi alcançado na COP26. No entender de Espinosa, secretária-executiva da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, não será esta semana — a última da COP26 — a resolver os problemas.

Claro que esta semana não conseguiremos resolvê-los”, disse a diplomata mexicana. “Para alguns países, o objetivo de 1,5ºC parece muito difícil de alcançar, mas para outros é a única maneira de sobreviver. Por isso, precisamos de trabalhar num bom caminho para sabermos como ultrapassar estes desfasamentos.”

Outro foi o vice-presidente da Comissão Europeia Frans Timmermans, responsável pela pasta do Pacto Ecológico Europeu, que disse aos delegados presentes na COP26 que “não estamos onde precisávamos de estar, nem lá perto“. “Estamos a andar na direção certa, mas o mundo continua muito longe do nosso objetivo de 1,5ºC. Esta semana, na COP26, precisamos de tomar decisões que nos coloquem no caminho desse objetivo. Dentro de um ano, porque estamos a ficar sem tempo.”

O próprio presidente da COP26, o britânico Alok Sharma, que tem sido a voz de muitos dos acordos e compromissos alcançados durante a cimeira, assumiu esta terça-feira que “foi feito algum progresso, mas claramente não o suficiente“. Sharma tem tentado pressionar os delegados nacionais a acelerar o processo negocial para que o calendário seja cumprido e haja um documento final na sexta-feira — mas começam a surgir relatos de que a cimeira poderá seguir o curso de outras anteriores e estender-se pelo fim de semana até que seja fechado um acordo.

O dia ficou ainda marcado pela divulgação de um estudo do instituto meteorológico britânico, que estima que, se o planeta chegar ao final deste século cerca de 2ºC mais quente do que na era pré-industrial, mil milhões de pessoas estarão expostas a situações de calor extremo, potencialmente fatal — um valor 15 vezes maior do que o registado atualmente, e o equivalente a cerca de uma em cada oito pessoas no mundo.

Por outro lado, foi ainda divulgada a versão mais recente do Índice de Desempenho nas Alterações Climáticas, uma iniciativa de uma rede de organizações não governamentais ambientais. No índice, a Dinamarca surge como o país mais bem cotado e Portugal é o 16.º classificado — mas o índice fica marcado pelo facto de ter o pódio vazio, já que nenhum país obteve a classificação de desempenho “muito alto”.

Também esta terça-feira (um dia que nas discussões temáticas foi dedicado às questões de género, igualdade, ciência e inovação), mais de 50 países comprometeram-se a baixar as emissões poluentes dos seus sistemas de saúde, uma iniciativa conjunta da COP26 e da Organização Mundial da Saúde, e 12 dos países mais desenvolvidos do mundo (incluindo EUA, Bélgica, Alemanha, França, Suécia, entre outros) anunciaram um donativo de 356 milhões de euros para o fundo dos países menos desenvolvidos, para ser usado em ações de mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas.