A Igreja Católica em Portugal está a investigar internamente — e remeteu também para o Ministério Público — uma suspeita de abusos sexuais alegadamente cometidos contra menores há mais de 30 anos por um sacerdote em Faro, confirmou ao Observador a diocese do Algarve.
O caso foi exposto há cerca de dois meses por uma das alegadas vítimas, Telmo Simão, durante uma entrevista ao apresentador Manuel Luís Goucha, no programa “Goucha” emitido no dia 6 de outubro. Na entrevista, o homem — que em tempos foi a única criança a viver na ilha de Faro — explicou como aos nove anos de idade foi parar à Casa dos Rapazes, uma IPSS situada na cidade de Faro.
Segundo Telmo Simão, que em criança havia sido abandonado pela mãe, foi o presidente da câmara municipal de Faro que o convidou para passar a residir naquela instituição, que lhe daria uma oportunidade de conviver com outras crianças e de aprender a ler e a escrever.
A oportunidade transformar-se-ia, porém, num pesadelo, explicou Telmo Simão a Manuel Luís Goucha, sublinhando como logo nos primeiros dias foi alvo de praxes violentas — a que se terão seguido vários episódios de abuso sexual.
“Os abusos sexuais vieram logo a seguir, por mais velhos. Hoje digo, sem medo nenhum, porque isso é que deu cabo da vida de muitos amigos meus, porque ainda hoje nós olhamos uns para os outros e temos vergonha do que passámos em miúdos. Era pelos mais velhos, por monitores que lá trabalhavam com crianças. Até vou dizer o nome de uma pessoa“, disse o homem, antes de ser interrompido pelo apresentador, que o advertiu para a possibilidade de ter problemas com a denúncia concreta na televisão.
“Posso só dizer que é padre. O senhor é de Boliqueime. Era capelão do Exército”, referiu apenas Telmo Simão, acrescentando que os abusos foram sofridos por vários dos jovens que frequentavam a instituição. “Éramos todos, a maior parte dos jovens“, afirmou, salientando que os casos foram silenciados. “Levávamos porrada se falássemos. A própria instituição protegia. Mesmo que nós contássemos, a própria instituição acabava por proteger.”
Telmo acabaria por fugir da instituição com 12 anos “para não sofrer mais“.
Durante cerca de três décadas, o caso permaneceu por investigar e as autoridades eclesiásticas só souberam da denúncia no mês passado, quando Telmo Simão falou na TVI. “Nem antes nem depois da emissão do referido programa televisivo chegou à Diocese do Algarve qualquer denúncia deste ou de qualquer outro caso“, afirmou ao Observador fonte oficial da diocese liderada pelo bispo D. Manuel Quintas.
“Não obstante, o Bispo diocesano, tendo tomado conhecimento das declarações produzidas naquele programa televisivo de entretenimento, à luz de quanto prescrevem as normas da Igreja a este propósito, pediu que fosse convocada a Comissão Diocesana de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis para escutar o seu parecer sobre este caso que, pelas afirmações feitas, terá ocorrido há mais de trinta anos”, acrescentou a diocese.
A comissão em causa é um organismo criado no verão de 2020 pela diocese do Algarve, em resposta a um pedido expresso dirigido pelo próprio Papa Francisco a todas as dioceses católicas do mundo para que implementassem estruturas semelhantes.
A comissão algarvia é composta pelo padre Rui Guerreiro (especialista em direito canónico), pelo procurador António Ventinhas (antigo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público), pelo pedopsiquiatra Pedro Dias, pelo juiz Pedro Pinto e ainda pelo padre Miguel Neto, do gabinete de informação da diocese.
Segundo a diocese do Algarve, o bispo D. Manuel Quintas, “depois de lhe ser transmitido o parecer dos especialistas que integram a referida Comissão, determinou a realização de uma investigação prévia para averiguar da credibilidade da denúncia produzida, dando disso conhecimento à Congregação da Doutrina da Fé [Vaticano] e ao Ministério Público da Comarca de Faro”.
A investigação prévia é um mecanismo previsto nas normas internas da Igreja Católica com vista a uma primeira averiguação das denúncias que permita decidir o que é feito de seguida, nomeadamente o tipo de inquérito que pode ser aberto e até as medidas preventivas a ser impostas ao sacerdote.
Neste caso em concreto, questionada pelo Observador, a diocese do Algarve não disse que tipo de medidas foram tomadas em relação ao padre, mas sublinhou que “o sacerdote sobre o qual recaem estas suspeitas colocou-se, de imediato, à disposição da Diocese para esclarecer este assunto, estando a ser devidamente acompanhado“.
Igreja levou caso ao Ministério Público e está em contacto com a vítima
O Observador questionou também a diocese do Algarve sobre se a Igreja já tinha entrado em contacto com Telmo Simão. A instituição liderada pelo bispo D. Manuel Quintas esclareceu que, apesar de não conhecer a alegada vítima antes da emissão do programa, já conseguiu localizar Telmo.
“Sendo o participante no programa televisivo desconhecido na Diocese, não dispúnhamos de qualquer contacto seu. Todavia, tendo presente as informações colhidas no programa, foi possível, inclusive com recurso a conterrâneos e contemporâneos seus, obter o seu contacto e estabelecer um primeiro encontro com ele“, disse fonte oficial da diocese.
A diocese do Algarve reiterou ainda que transmitiu o caso ao Ministério Público. “Foi enviada uma participação escrita ao Ministério Público da Comarca de Faro, no início do processo“, afirmou a mesma fonte.
O Observador questionou também a Procuradoria-Geral da República para saber se existe um inquérito aberto em torno deste caso, mas até ao momento da publicação deste artigo ainda não foi possível obter uma resposta concreta.
A julgar pelas referências temporais apresentadas pelo denunciante, tudo indica que será impossível levar a julgamento os alegados crimes, uma vez que o prazo de prescrição dos abusos sexuais de menores na lei portuguesa ainda é de cinco anos a contar a partir da maioridade da vítima (esgotando-se, por isso, quando a vítima atinge os 23 anos de idade). O Parlamento aprovou recentemente na generalidade uma proposta para aumentar este prazo para os 50 anos da vítima — que ainda não está em vigor.
Porém, no caso da justiça eclesiástica, não só o prazo de prescrição é mais longo (20 anos a contar da maioridade da vítima) como o Vaticano dispõe de prerrogativas próprias que lhe permitem suspender a prescrição do crime e realizar um julgamento interno — e, como a diocese do Algarve confirmou ao Observador, a Congregação para a Doutrina da Fé (organismo do Vaticano que supervisiona o julgamento dos delitos mais graves) já foi informada deste caso.
Segundo a diocese algarvia, a investigação interna ao caso prossegue agora “sob a exclusiva competência e responsabilidade da Comissão de inquérito, cujo trabalho sigiloso a Diocese apoia e respeita, não interferindo no desenrolar do processo“.
A diocese salientou ainda que a instituição Casa dos Rapazes “não tem, nem nunca teve, qualquer ligação à Igreja”.
Igreja em Portugal prepara investigação sobre abusos ao longo da história
O caso surge numa altura em que a crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica regressou recentemente ao topo da agenda mediática, à boleia da publicação, em França, de um relatório independente que estimou em mais de 300 mil as vítimas de abusos às mãos das instituições da Igreja ao longo dos últimos 70 anos.
Já este mês, e após mais de dois anos a recusar fazê-lo, a Conferência Episcopal Portuguesa, órgão máximo da Igreja Católica em Portugal, anunciou que vai criar uma comissão independente com o objetivo de elaborar um relatório sobre a crise dos abusos sexuais de menores no contexto eclesiástico ao longo das últimas décadas em Portugal.
Até agora, os bispos portugueses tinham recusado fazê-lo, argumentando que a crise dos abusos não teve uma dimensão significativa em Portugal e que o país tinha sido uma exceção no panorama global da Igreja Católica. Caso a investigação independente avance e a comissão tenha acesso aos arquivos eclesiásticos portugueses, o resultado do estudo dará o primeiro retrato abrangente da história desta crise em Portugal.