Foi numa aula de português, no décimo ano, que a investigadora Mónica Sousa decidiu o futuro. “A professora mostrou-nos uma entrevista com a cientista [imunologista] Maria de Sousa e eu pensei que poderia fazer o mesmo, mas ainda sem saber muito sobre o que era ciência.” Embora sempre tenha tido melhor desempenho “nas disciplinas de ciências humanas e sociais”, escolheu Quimicotecnia, “porque seria mais desafiante”, reflete, sentada no seu gabinete no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S).

A diretora do Instituto de Biologia Molecular e Celular (que está englobado no i3S) está convicta que fez a escolha certa. Aliás, atrás dela, no peitoril da janela, está uma garrafa de champanhe vazia como validação do percurso. “Foi para festejar a publicação que deu origem ao projeto de terapia genética para lesões da medula espinhal e que candidatamos à [fundação] ‘la Caixa’”, esclarece, reportando-se ao trabalho publicado na revista científica The Journal of Clinical Investigation, onde demonstraram que uma versão modificada da proteína Profilina-1 (Pfn1) é capaz de aumentar a regeneração de neurónios no sistema nervoso periférico e central quando existe lesão no nervo ciático ou na medula espinhal.

Joana Rodrigues (à esq.) é uma das investigadoras da equipa de Mónica Sousa. A equipa de oito elementos conseguiu demonstrar que uma versão modificada da proteína Profilina-1 (Pfn1) é capaz de aumentar a regeneração de neurónios no sistema nervoso periférico e central quando existe lesão no nervo ciático ou na medula espinhal

Em 2020, esta investigação inovadora multipremiada foi financiada ao abrigo do Programa Caixa Impulse Validate [entretanto rebatizado Concurso CaixaResearch Validate] para transferência de tecnologia. Agora, a coordenadora científica e a equipa de oito investigadores querem compreender como podem melhorar o grau de eficácia na ativação da produção da proteína para melhorar os tratamentos dessas lesões.

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O objetivo principal, reforça a cientista de 49 anos, é melhorar a forma como se regeneram os neurónios, essas células básicas que constituem o nosso sistema nervoso e que comunicam umas com as outras através do axónio, um prolongamento que transporta a informação. Esta investigação, batizada de PRORegen, “tem força translacional”, sublinha, nomeadamente na área da medicina. Por isso é inovadora, visto que poderá vir a originar uma terapia genética mais eficaz nas lesões da medula espinhal humana. É que, apesar de, anualmente, entre 250 mil a 500 mil pessoas sofrerem de lesão medular (LM,) reforça a investigadora, a partir de dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), a ciência ainda não oferece tratamentos eficazes e os nervos não são capazes de regenerar.

Aquilo que acontece aos doentes com lesão medular é que chegam ao hospital e são estabilizados, depois passam por um período relativamente curto de fisioterapia e, depois, ficam à mercê deles próprios”, diz a investigadora.

As lesões da medula espinhal podem causar problemas graves e permanentes, com sintomas incapacitantes, como a perda da função motora, paralisia ou perda de controlo da bexiga e do intestino. “Se esta investigação funcionasse em humanos era de facto verdadeiramente inovadora e com a capacidade de mudar completamente a qualidade de vida destas pessoas.”

De acordo com a OMS, quem sofre deste tipo de lesões têm duas a cinco vezes mais probabilidade de morrer de forma prematura. Por isso, nota também a cientista, a equipa recebe muitos contactos de familiares de doentes e pessoas que padecem desta doença na esperança de que possam ajudá-las. “Os doentes estão ávidos de uma terapia para este tipo de lesões”, sublinha, apressando-se a desmistificar a ideia salvífica das promessas terapêuticas, acautelando que é preciso ter em conta que há um hiato de tempo necessário “entre a investigação e até se chegar a uma terapia” e que mesmo que todo o processo de validação decorra da melhor forma,“ demorará anos”.

Depois, aponta a existência de um “fosso financeiro” entre a descoberta e a aplicação da investigação. Por um lado, a transferência do conhecimento acarreta custos avultados. Por outro, “este tipo de terapia em si é extraordinariamente caro”, com gastos na ordem dos milhões de euros por doente.

“Os doentes estão ávidos de uma terapia para este tipo de lesões”, diz a investigadora. Mas é sempre preciso pensar nos vários anos que passam entre a investigação e o momento em que uma terapia fica disponível

Mónica é mãe de duas filhas. Licenciou-se em Bioquímica pela Universidade do Porto, em 1994. Depois, foi uma das selecionadas para o seleto Programa de Doutoramento do Instituto Gulbenkian de Ciência, estruturado numa série de cursos que abordam tanto conceitos fundamentais, como investigação de ponta em biologia. O que mais a mobiliza é, sem dúvida, “a investigação fundamental”. “Eu sou muito académica, gosto de estudar, e gostava de poder contribuir para que se conhecesse melhor a importância da ciência básica, porque sem investigação fundamental nós não vamos conseguir curar nada.”

No seguimento do programa doutoral, escolheu desenvolver a tese de doutoramento em Ciências Biomédicas, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, que teria, igualmente, um contributo fundamental para a atual investigação da PRORegen. “A descoberta mais importante do meu doutoramento foi esta: na paramiloidose há deposição da proteína mutada, sob a forma de agregados de amiloide, mas a amiloide em si não é a causa da doença.” Ou seja, “são precursores destas fibras, pequeninos agregados que vão despoletar uma série de reações que vão levar à morte axonal”, indica, reportando-se à degeneração neuronal.

Entre 2000 e 2002, Mónica Sousa foi bolseira de pós-doutoramento no departamento de Patologia na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, integrando também o grupo de investigação de Neurobiologia Molecular do IBMC, tendo estudado a neurodegeneração causada por fibrilas amilóides.

O neurónios são células do sistema nervoso, que comunicam entre si através do axónio, um prolongamento responsável por transferir a informação celular. “Quando estão em desenvolvimento embrionário, crescem de forma robusta”, diz a investigadora. Mas os axónios adultos desenvolvem-se com maior dificuldade

Para melhor explicar o atual projeto investigativo, Mónica começa por explicar as bases científicas. Primeiro, os neurónios são células básicas que constituem o nosso sistema nervoso, comunicando entre si através de “um prolongamento muito comprido, fininho” e importante que é o axónio. Ele é o responsável por “levar informação de um neurónio para o outro”. “Quando estão em desenvolvimento embrionário, esses axónios crescem de forma robusta”, enfatiza. O mesmo não sucede em axónios adultos, pois desenvolvem-se com maior dificuldade e, quando ocorrem lesões como as da medula espinhal, o processo é degenerativo, o que faz com que as doenças e as lesões do sistema nervoso sejam praticamente irrecuperáveis. “Portanto, a informação que eles deviam transportar deixa de ser transportada e para além das lesões, esta é também a causa, por exemplo, de muitas doenças neurodegenerativas.”

Depois da descoberta – entretanto patenteada – da capacidade regenerativa da profilina, em 2019, o grupo de investigação tinha chegado a um conhecimento fundamental. Mas precisavam de ir mais além para o consolidar, enquadrando-o numa estratégia de tradução para a clínica. Foi nesse embalo que a submeteram, em plena primeira vaga pandémica, à Fundação “la Caixa”. “Foi a [investigadora] Diana Machado que liderou inicialmente este projeto” – faz questão de enfatizar a coordenadora científica do PRORegen – “e que fez grande parte das formações”. Agora têm um plano de negócio e um foco: atrair investidores. Além disso, acresce, têm um “road map regulatório”, com todos os passos que têm de seguir, para conseguirem ter “um produto que possa ser usado na clínica”.

Na investigação, identificaram que ​​a Pfn1 era responsável por um aumento da dinâmica de  actina durante o desenvolvimento embrionário. Para isso, colocaram neurónios em cultura e, primeiro, introduziram “a forma normal da proteína e, depois, um mutante da profilina que aumenta muito a sua atividade”.

Depois da descoberta da capacidade regenerativa da proteína profilina, em 2019, o grupo de investigação (na imagem, Sara Sousa) chegou a um conhecimento fundamental. Agora querem consolidá-lo, enquadrando-o numa estratégia de tradução para a clínica

A neurobióloga abre o computador. Procura apresentações científicas nas várias pastas e continua a explicitação, indicando os passos seguidos para validar a relevância e as implicações da investigação para o campo da Biomedicina, sobretudo. Veem-se imagens de ramificações e ratinhos no ecrã. Analisaram, para já, as soluções na medula espinhal em animais, reforça, apontando para as imagens. Do lado esquerdo do ecrã vê-se um ratinho em que injetaram “um vírus controlo”. Do lado direito, aquele onde injetaram “um vírus a expressar a tal forma de profilina”. De seguida, debruçaram-se sobre a observação microscópica do local de lesão “para ver se encontramos axónios a regenerar.”

Aponta, entretanto, para o animal que recebeu o vírus administrado com profilina. “Teve uma lesão completa na medula espinhal e, ao fim de dois meses, recuperou alguma função motora, enquanto que o outro [que tomou o placebo] não; apenas arrasta as patas.” Mónica é prudente e adverte: “isto aconteceu em 3 em 7 animais”. Logo, a equipa de investigação quer aumentar este número de validação de resultados e, depois, incidir sobre a recuperação deste tipo de lesão. Para isso, a equipa do PRORegen está não só a testar vírus modificados, como também a tentar desenvolver uma forma de desligar a produção da profilina, após esta ter desempenhado a sua função.

A proteína profilina altera características celulares importantes – e a sua produção contínua pode ser tóxica. O que se pretende é que a sua expressão seja controlada, desligando-a depois de ter induzido regeneração e recuperação funcional

“Estamos a melhorar o vetor viral, em colaboração com a University of Massachussets, que tem um laboratório com muita experiência em terapia genética, para torná-lo mais seguro e eficaz”. O vetor viral, esclarece, é um veículo que entrega a proteína que descobriram que aumenta a regeneração. “O problema destes vetores virais é que eles podem entrar em células que não são as que queremos. Portanto, há uma série de preocupações relacionadas com a eficácia e a segurança que estamos a tentar melhorar.”

Além disso, o vetor viral é “uma espécie de Lego”. Ou seja, conseguem “mudar diferentes tipos de componentes de um vetor para o fazer adquirir determinadas propriedades” Como a profilina é uma proteína que altera características celulares importantes – e cuja produção contínua pode ser tóxica –, aquilo que se pretende é que a sua expressão seja controlada. Nesse sentido, é importante criar-se um mecanismo para “desligar a produção da proteína”, depois de esta ter efetuado a sua função ou seja, de ter induzido regeneração e recuperação funcional. Nesta fase de investigação, sempre que iniciam o teste de um novo vetor, têm de reiniciar todo o processo de testagem em animais, o que demora meses.

Todos os anos, entre 250 mil e 500 mil pessoas sofrem lesões medulares, segundo dados da OMS. Os nervos não são capazes de regenerar e a ciência ainda não tem ainda tratamentos eficazes. Mónica Sousa espera contribuir para alterar isso

Quanto ao facto de esta investigação poder vir a beneficiar outro tipo de terapêuticas, a cientista é cautelosa, mas admite que “possa ter um papel muito importante noutras doenças neurodegenerativas, em que o axónio está doente sem ter uma lesão, nomeadamente no caso da esclerose lateral amiotrófica, pois há mutações na profilina que impedem a sua função [e levam ao desenvolvimento desta doença].”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto PRORegen, Terapia Genética para Lesões da Medula Espinal, liderado por Mónica Sousa, do i3S, foi um dos 23 selecionados (três em Portugal) – entre 149 candidaturas internacionais – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, tendo recebido 75 mil euros ao abrigo da edição de 2020 do programa Caixa Impulse – que se chama agora Concurso CaixaResearchValidate e promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2022 deverão abrir no início do ano (data a anunciar).