Natural de Christchurch, na Nova Zelândia, Charlotte Bellis foi durante vários anos repórter da Al Jazeera — e foi nessa qualidade que, em agosto de 2021, assistiu à chegada dos talibãs a Cabul, era na altura a enviada especial daquele canal ao Afeganistão.
Na primeira conferência de imprensa do novo governo, no dia 19 desse mês, era a única mulher presente. De cabelos cobertos por um lenço negro, foi ela quem fez a pergunta: “O que vão fazer para proteger os direitos das mulheres e das raparigas?”. Passados uns dias, já em setembro, voltou a Doha, capital do Qatar, onde o canal de notícias tem sede — e logo a seguir percebeu que os seus próprios direitos também já não estavam assegurados.
Contra os vaticínios de todos os médicos que até então tinha consultado, Charlotte Bellis, de 35 anos, estava grávida. Porém, não era casada e, no Qatar, isso era um problema grave, uma ilegalidade. “Não poderia tratar-te. Terias de casar ou de sair do país o mais depressa possível”, respondeu-lhe a médica a quem perguntou o que lhe aconteceria se porventura ficar no país grávida e fora do casamento.
Em novembro, sem explicar sequer porquê, demitiu-se da Al Jazeera e ficou sem salário e sem seguro de saúde. Combinou com o namorado, Jim Huylebroekl, fotojornalista freelancer estacionado em Cabul, encontrarem-se na Bélgica, de onde ele era natural. O objetivo final era viajarem para a Nova Zelândia mas, para isso, era preciso esperar que o país, fechado por causa da pandemia de Covid-19, decidisse reabrir fronteiras — o que estava previsto para fevereiro. A seguir, ainda era necessário conseguir uma das escassas vagas do MIQ, o sistema implementado em outubro de 2020 que obriga os que regressam à Nova Zelândia reservar um dos quartos disponíveis para cumprir o período de isolamento, uma espécie de “lotaria”.
Iam ter de esperar. O problema era: onde? Como os neozelandeses só podem passar três meses em cada período de seis no espaço Schengen e não queriam correr o risco de alguma coisa correr mal com a gravidez e não poderem voltar à Bélgica, decidiram que ali não podiam ficar. Com as portas da Nova Zelândia fechadas, escreveu a jornalista, numa carta publicada esta sexta-feira no New Zealand Herald, não tiveram outra saída se não regressar ao Afeganistão — pelo menos esse visto ainda tinha validade.
Antes pegou nos contactos que, como jornalista no local, tinha feito e marcou uma reunião à distância. “Sabem que namoro com o Jim do The New York Times, mas não somos casados, certo? Bem, estou grávida e não consigo voltar para a Nova Zelândia. Se eu for para Cabul, teremos algum problema?”, perguntou. “Não, estamos felizes por si, pode vir e não terá problemas. Basta dizer às pessoas que é casada e se a situação se agravar, telefone-nos. Não se preocupe. Vai correr bem”, disseram-lhe do lado de lá.
“Quando os talibãs te oferecem — a ti, uma mulher grávida e solteira — um porto seguro, sabes que a tua situação é tramada”, escreveu a jornalista na carta em que, no final da semana passada, denunciou a situação em que se encontra.
“Isto é ridículo. É meu direito legal ir para a Nova Zelândia, onde tenho cuidados de saúde, onde tenho família. Todo o meu apoio está lá”, disse Charlotte Bellis, agora grávida de 25 semanas, este domingo à Associated Press (AP). Depois de, num primeiro momento, as autoridades neozelandesas (que entretanto remeteram para o final de fevereiro nova reavaliação sobre a reabertura de fronteiras) terem recusado o seu pedido de entrada, com o mediatismo que o caso alcançou nos últimos dias a situação mudou de figura.
Este domingo, contou a jornalista à AP, recebeu um e-mail do governo de Jacinda Ardern a dizer-lhe que, se remeter um pedido a declarar-se como “pessoa em perigo”, terá entrada garantida no país onde nasceu. Apesar do terror que a ideia de ter a filha no Afeganistão lhe provoca — “A ONU escreveu recentemente que espera que mais 50 mil mulheres morram durante o parto no Afeganistão até 2025 por causa do estado dos cuidados de saúde maternos”, detalhou na carta publicada no New Zealand Herald —, Charlotte Bellis diz que ainda não tem a certeza se vai ou não seguir o conselho das autoridades neozelandesas.
“Isso dá-lhes uma oportunidade de negar qualquer responsabilidade e, francamente, isso não é verdade”, disse à Associated Press. A atual política de restrições do governo por causa da Covid-19, concluiu, deixou “demasiadas pessoas encalhadas em todo o mundo sem caminhos para chegar a casa”.