Às vezes o maior dos problemas é o medo do problema. Na vida, na economia, na saúde, na ciência. E é exatamente isso que está a acontecer com aquilo a que já se chama “a crise dos antibióticos”. O aumento das resistências das bactérias a esta classe de medicamentos não é novidade e há algumas causas bem definidas: o uso destes fármacos na produção animal, a automedicação, o incumprimento dos esquemas terapêuticos pelos doentes ou a prescrição de antibióticos inadequados. Mas o que agiganta este desafio são as dinâmicas de mercado fundadas no medo que este problema causa: neste contexto atual, o desenvolvimento de um antibiótico novo por parte de uma companhia farmacêutica pode resultar num prejuízo financeiro brutal. Resultado: não é desenvolvido. E, então, o problema aumenta porque não há novos antibióticos para combater resistências antigas.
Há cerca de cinquenta anos que não temos moléculas novas. O que sai para o mercado são adaptações de antibióticos dos anos 1960 e 70”, diz Ricardo Monteiro. “A última molécula teve casos de resistência reportados apenas três meses após a entrada no mercado.”
Para o investigador do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, “esse medo do desenvolvimento de resistências faz com que as moléculas seminovas também só sejam usadas em casos extremos e isso, do ponto de vista de desenvolvimento farmacêutico, é um problema gigante: as empresas demoram muitos anos e gastam milhões para desenvolver uma molécula nova e têm medo que o retorno desse investimento seja reduzido”.
No ano passado a Organização Mundial de Saúde (OMS) – que tem feito alertas constantes sobre o tema – veio lançar mais um: a falha persistente em desenvolver, fabricar e distribuir novos antibióticos eficazes está a alimentar ainda mais o impacto da resistência antimicrobiana e ameaça a capacidade de tratar infecções bacterianas com sucesso. Um relatório publicado pela OMS, também em 2021, revela que nenhum dos 43 antibióticos atualmente em desenvolvimento resolve o problema da resistência às bactérias mais perigosas do mundo.
Uma nova forma de luta
Têm surgido por isso novos conceitos que pretendem abordar o combate às bactérias de outra forma que não o seu extermínio. Porque matar bactérias indiscriminadamente também aumenta as resistências. “Quando tomamos um antibiótico, o meio competitivo da bactéria resistente desaparece”, diz o investigador. “Ou seja, ao reduzirmos a população de bactérias do corpo, deixando só as que não conseguimos matar, estas bactérias resistentes proliferam mais, sem a competição das outras.”
O plano alternativo de muitos cientistas, como Ricardo Monteiro, é desarmar as bactérias. “A nossa ideia é desenvolver um composto capaz de atacar pontos importantes da bactéria e que lhe diminuam a virulência, para que deixe de produzir doença. Mas sem a matar. A bactéria deixa de ter capacidade infecciosa, mas como não limitamos o crescimento da problemática, também não limitamos o crescimento das não-problemáticas. Assim, o meio competitivo ajuda a que a infecção seja ‘limpa’ muito mais facilmente pelo sistema imunitário do organismo.”
Ricardo está, em concreto, a tentar desarmar a Listeria monocytogenes, uma bactéria de origem alimentar que pode estar presente em carne e produtos frescos. A infecção por Listeria não é tão frequente como com outras bactérias mais conhecidas – como a Salmonella – mas tem consequências mais graves. De acordo com o último relatório do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), em 2020 registaram-se em Portugal 47 casos de listeriose em humanos. O conjunto dos 27 estados-membros reportou 1876 casos confirmados, sendo que 870 implicaram hospitalização e 167 dos quais resultaram em morte.
Um dos grandes problemas da Listeria é a sua grande “apetência” por grávidas. “A prevalência em gestantes é vinte vezes superior à da população geral.” Muitas vezes não provoca sintomas na mulher, mas passa através da placenta e pode provocar abortos espontâneo nos primeiros meses de gravidez ou infecções no feto que são muito difíceis de tratar e exigem grandes quantidades de antibióticos durante vários meses.
“Descobrimos há uns anos um processo metabólico da Listeria que envolve a glicosilação dos ácidos teicóicos da parede celular: na ausência de um açúcar chamado ramnose, a Listeria perde a capacidade infecciosa – deixando de provocar doenças nos ratinhos –, torna-se mais sensível a antibióticos (a alguns dos quais é naturalmente resistente) e fica mais sensível a novas terapias que estão a surgir como os peptídeos antimicrobianos”, explica o investigador. Com o projeto financiado pela Fundação “la Caixa” ao abrigo do Programa CaixaResearch Validate, o cientista pretende desenvolver moléculas que já mostram potencial para inibir esta glicosilação.
A molécula está neste momento em fase pré-clínica: já foi validado o seu efeito in vitro na diminuição da virulência da bactéria e está agora a ser testada em linhas celulares, para aferir a toxicidade em vários tipos de células humanas. No próximo ano estão previstos ensaios in vivo, com modelos animais.
De Constantim para o mundo
A infância do investigador de 33 anos foi passada em Constantim, uma aldeia com cerca de mil habitantes perto de Vila Real, em Trás-os-Montes. A pacatez do sítio dava-lhe liberdade e passava o tempo na rua a brincar com as outras crianças antes de regressar a casa para o jantar. Também nas idas e vindas da escola foi independente muito cedo. Aos 14 anos, montado na sua Casal Boss a duas velocidades, vencia rapidamente os cinco quilómetros de distância entre Constantim e a escola, em Vila Real.
Ricardo era bom aluno, mas não sabia o que queria ser quando fosse grande. Foi no fim do secundário que se decidiu: piloto-aviador. Passou uma semana em casa dos tios, em Lisboa, para fazer as provas para a Força Aérea. “Fiquei bem colocado nos psicotécnicos e nas provas físicas. Depois chegou a vez dos testes médicos e descobri que era daltónico.” Resignou-se e escolheu “qualquer coisa” em Vila Real – no caso, a licenciatura em Genética e Biotecnologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Não tinha qualquer desejo de ser cientista, mas durante o curso começou a detectar um padrão: gostava de desafios intelectuais, pelo que uma carreira na ciência poderia fazer sentido. “Às vezes tinha duzentos slides para estudar mas detinha-me logo em pormenores do primeiro e ficava a pesquisar exaustivamente.” Outras vezes ia jogar futebol com amigos e, em vez de dar apenas pontapés à bola, ficava entretido a tentar perceber como é que era cosida ou o que tinha lá dentro. “Estava sempre a tentar perceber como é que as coisas são e como funcionam.”
No final da licenciatura estagiou no laboratório do Grupo de Genómica Funcional e Proteómica de Gilberto Igrejas, na UTAD, e a ideia era fazer o mestrado neste contexto. Mas foi nesta altura que começaram a aparecer na sua vida circunstâncias inesperadas a mudar-lhe os planos com uma semana de aviso. Tinha acabado de se inscrever no mestrado quando, numa das primeiras reuniões do laboratório, um colega de equipa desistiu de integrar um projeto em França porque arranjou emprego. “O professor Igrejas olhou à volta e disse: ‘Então vai o Ricardo’.” Tinha dúvidas e medos, mas faltou-lhe coragem para dizer não. O bilhete de avião já comprado foi logo trocado de mãos, ali, na reunião, e, quando olhou para ele, viu que a ida estava marcada para dali a uma semana. “Cheguei a casa e disse à minha mãe: Daqui a uma semana vou para França’. Fomos comprar uma mala de viagem no próprio dia.”
Ricardo Monteiro esteve em Clermont-Ferrand – a cidade da Michelin – a fazer mestrado durante dois anos e integrou depois mais um projeto de investigação. O plano era regressar a Portugal para fazer o doutoramento, mas “uma semana antes de me vir embora, num almoço com petiscos portugueses, para a despedida, entra um dos chefes e diz: ‘Ganhei um projeto europeu enorme: preciso de alguém para ficar cá mais quatro anos. Queres ficar tu, Ricardo?’” Veio para Portugal, mas só de férias. Logo regressou para começar o seu doutoramento, financiado com uma bolsa Marie Curie, que desenvolveu entre o Instituto Nacional de Investigação para a Agricultura, a Alimentação e o Ambiente de França (INRAE), e a GlaxoSmithKline, em Siena, Itália.
Em 2018, perto do fim do doutoramento, fez uma tentativa de integrar o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, mas um problema burocrático com equivalências inviabilizou o processo. Começou a organizar tudo para partir para Boston, nos EUA, mas foi contactado pelo i3S, quando o instituto abriu uma nova vaga para investigação. Veio ao Porto para uma entrevista – cerca de uma semana antes da partida para Boston. E ficou. Desde 2018 que integra o grupo de investigação em Microbiologia Molecular, liderado por Didier Cabanes.
Quando a conversa muda da ciência para a vida é que começam a surgir muitos interesses, uns comuns, outros singulares: duas horas diárias de treino de crossfit, acompanhar quotidianamente o mercado bolsista, agricultura ao fim-de-semana, gerir uma comunidade online de streamers. Continua a ser o rapaz que quer saber o que está dentro da bola de futebol: interessa-se pelo mundo em geral e, mesmo profissionalmente, não se fecha dentro da caixinha da ciência. “Se for preciso, vou fazer outra coisa”, diz com um encolher de ombros. Nos próximos três anos, pelo menos, não vai ser preciso pensar nisso: vai estar dedicado a desenvolver um composto capaz de aplacar a Listeria.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Targeting Cell Wall Glycosylation: an Innovative Antimicrobial Strategy Against Gram-positive Pathogens, liderado por Ricardo Monteiro, do i3S, foi um dos 17 selecionados (três em Portugal) – entre 97 candidaturas internacionais – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do programa Caixa Impulse. O investigador recebeu setenta mil euros. O programa, que se chama agora CaixaResearch Validate, promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 10 de fevereiro. Os prazos para a edição de 2023 deverão abrir em novembro.