Vladimir Putin está sentado numa secretária, sozinho, a metros do grupo de ministros e militares que integram o Conselho de Segurança russo e que se vão aproximando, um a um, do púlpito para falar. Vários parecem nervosos, especialmente com as interrupções e a recorrente ironia, misturada com uma visível impaciência, do líder. No vídeo de mais de uma hora e meia divulgado esta segunda-feira na televisão estatal russa, supostamente em direto, a ideia é ver-se uma reunião dos responsáveis russos a transmitirem opiniões unânimes sobre o reconhecimento da independência das repúblicas no leste da Ucrânia — mas as dúvidas são muitas, desde a espontaneidade do vídeo ao momento em que terá sido realmente gravado.

O desconforto entre os participantes do encontro, que antecipou o discurso agressivo com que Putin anunciaria, horas depois, a decisão de reconhecer a independência de Donetsk e Lugansk e assim rasgar os acordos de paz de Minsk, é evidente. A interação mais notada acontece quando o diretor dos serviços de informação externos, Sergey Naryshkin, começa a mencionar a hipótese de “dar aos parceiros ocidentais uma última oportunidade” e “forçar Kiev a escolher a paz”, remetendo para “o pior cenário” a decisão que estão ali reunidos para tomar.

Putin não parece satisfeito. Enquanto tamboreia com os dedos no tampo da secretária e começa a sorrir, interrompe: “O que significa isso? No pior cenário? Estás a sugerir que comecemos negociações?”. Seguem-se minutos de uma conversa desconfortável: enquanto Naryshkin hesita e vai dizendo que “não”, Putin ordena-lhe que fale “diretamente”. “Eu vou apoiar a proposta de reconhecimento…”, tenta dizer o diretor de serviços de informação. “Vais apoiar ou apoias? Fala diretamente, Sergey!”, interrompe Putin. “Eu apoio a proposta…”. “Então di-lo assim! Sim ou não!”.

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Naryshkin ainda declara que apoia a proposta para reconhecer a inclusão das duas repúblicas populares na federação russa — mas não é isso que está em cima da mesa, rejeita Putin — até que finalmente o responsável dá uma resposta que deixa o Presidente russo satisfeito: “Sim, eu apoio a proposta de reconhecimento da independência”. “Muito bem, podes sentar-te agora, por favor. Obrigado”.

As garantias que Putin vai dando sobre a espontaneidade da discussão são várias: a meio do vídeo, numa tradução citada pelo The Guardian, o líder russo insiste em dizer que como “todos” os presentes sabem, e como faz questão de “sublinhar”, o assunto não foi discutido previamente. “Não pedi a vossa opinião antes. E isto está a acontecer espontaneamente, porque queria ouvir as vossas opiniões sem qualquer preparação preliminar”.

O dia em que Vladimir Putin matou os Acordos de Minsk — e abriu a porta a uma possível guerra

Apesar dos momentos de tensão — o primeiro ministro, Mikhail Mishustin, fala rapidamente e Putin interrompe-o para perguntar diretamente se apoia a decisão relativa a Donetsk e Lugansk, ao que responde brevemente que sim — o resultado é, pelo menos para fora, unânime: quando Putin questiona se há “pontos de vista diferentes”, só se ouve silêncio.

As interações tensas, o aparente nervosismo dos intervenientes que Putin vai questionando e o cenário grandioso — uma sala do Kremlin dedicada à Ordem de Santa Catarina, símbolo do império russo que Putin justificaria para defender que o nacionalismo ucraniano é uma “infeção” — não são os únicos sinais que estão a gerar polémica à volta do vídeo.

O momento que o “Financial Times” descreve como “um espetáculo feito para TV”, a Euronews classifica como “ensaiado e pré-gravado” e o Politico como uma “farsa coreografada” também contém pistas que servem de base para argumentar que afinal, e ao contrário das garantias dadas pelo Presidente russo, a reunião não foi transmitida ao vivo.

No Twitter já circulam fotografias de frames que podem indicar isso mesmo — como o momento em que é possível ver que o relógio do ministro da Defesa russo, Sergey Shoigu, marca as 12h52 (hora local). Ora a reunião, como apontava nesta rede social a editora do Politico Zoya Shetfalovich, só começou cerca de duas horas depois, às 16h54, o que reforça a ideia de que o contexto do encontro não terá sido exatamente o que Putin referiu.

A decisão seria tomada em breve, como diria Putin, em jeito de remate da reunião tensa em que ouviu os responsáveis russos dizerem — com várias hesitações pelo meio — o que queria ouvir. Horas depois, o presidente russo faria, de novo sozinho a uma secretária mas já sem ninguém à sua volta, a declaração que poderá ter aberto a porta a uma nova guerra.