“Desde hoje os nossos países estão em campos opostos. A Rússia atacou o nosso estado como os nazis da Alemanha o fizeram na segunda guerra mundial”. As palavras são de Volodymyr Zelensky, depois da operação militar desencadeada por Kremlin, numa declaração em que apelou à união do país a favor da liberdade.

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Zelensky: do humor na TV para a guerra com Putin

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A evocação da Segunda Guerra Mundial não é inocente. Numa visita a Jerusalém, em 2020, Zelensky tinha contado a sua própria história ao então primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu: três irmãos do avô foram vítimas do holocausto, executados pelos ocupantes alemães, mas o seu avô sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, tendo contribuído, disse, “para a vitória sobre o nazismo e a sua ideologia odiosa. Dois anos depois da guerra, o seu filho nasceu. E o seu neto nasceu 31 anos depois. 40 anos depois, o seu neto tornou-se presidente. E hoje está perante si”. E hoje Zelensky está perante o mundo e o inimigo Putin.

A um presidente judeu, Putin, esta madrugada, pediu a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. No que recebeu a resposta de Zelensky: “Pode um povo que perdeu oito milhões de vidas na batalha contra o nazismo apoiar o nazismo?”, continuando após uma pausa: “Como posso ser nazi? Explique isso ao meu avô, que passou a guerra na infantaria soviética e que morreu coronel numa Ucrânia independente”.

Zelensky chegou à presidência em maio de 2019, depois de uma carreira bem sucedida de ator e comediante. Quando venceu as eleições escrevia-se que a realidade tinha imitado a ficção. Afinal Zelensky tinha interpretado o papel de líder do país na série televisiva “O Servo do Povo”. Mas na série não teve de enfrentar a guerra. Chegou ao poder com 13,5 milhões de votos mais 9 milhões que o rival Petro Poroshenko — Zelensky teve 73,2% dos votos, contra os 25,3% de Poroshenko, conseguidos à segunda volta.

A 31 de março, dia da primeira volta das eleições, Zelensky quase não conseguia chegar à cabine de voto. Não que o tentassem impedir de exercer o seu direito constitucional, numa Ucrânia onde a corrupção cresce e onde o conflito com a Rússia parece não ter fim, mas porque o comediante ucraniano estava rodeado de jornalistas com câmaras e de populares com smartphones.

A popularidade de Zelensky, e que há muito se espelhava nas audiências dos seus programas televisivos, teve reflexos também no número de votos que angariou. Então com 41 anos de idade e zero de experiência política, Ze — como lhe chamam os seus apoiantes — encostou os opositores a um canto logo na primeira volta —  com 30% das cruzes nos boletins, deixou Petro Poroshenko, que era o presidente do país, nos 18,5% e Yulia Timoshenko, antiga primeira-ministra e que cumpriu dois anos de uma pena de prisão de sete, por abuso de poder, nos 14% de votos e sem lugar na segunda volta, o que a levou a falar em fraude eleitoral.

Na segunda volta, a 21 de abril de 2019, a vitória foi confirmada e Zelensky tomou posse como presidente da Ucrânia a 3 de junho.

Inauguration Ceremony For Ukraine's President Volodymyr

O dia em que Zelenskiy tomou posse como Presidente da Ucrânia

A vitória nas eleições foi notícia em todo o mundo. Mais tarde Zelensky voltou estar na ribalta por causa do processo de impeachment a Donald Trump, com a suspeita de que o presidente ucraniano teria sido chantageado pelo então homólogo norte-americano: Trump teria pedido a Ze “o favor” de mandar investigar o filho de Joe Biden — que depois chegou à presidência dos Estados Unidos e é agora seu aliado no confronto com a Rússia —, ao mesmo tempo que congelava vários milhões de euros de ajuda à Ucrânia.

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Trump foi absolvido em fevereiro de 2020, mas nesse mesmo ano perderia a presidência dos Estados Unidos para Joe Biden que tomou posse em janeiro de 2021. Por estes dias, o telefone entre Kiev e Washington não tem parado. Na iminência do ataque russo, foi a presidência de Biden que terá desaconselhado Zelensky a não sair do país. Era sua intenção descolar-se a Munique no final de fevereiro, mas algumas autoridades americanas mostravam preocupação, segundo a CNN, que sua saída do país podia ser aproveitada por Moscovo para alegar que Zelensky tinha fugido. Não saiu do país, mas Biden também não deverá entrar, depois de ter recebido o convite — sem resposta — do presidente ucraniano para visitar Kiev. O convite foi feito publicamente já as tensões com a Rússia escalavam. Para Zelensky esta visita seria um forte sinal para o Kremlin.

Dois anos de presidência e Zelensky já teve de enfrentar tudo. Nem há um ano dizia, à revista The Economist, que “ainda não me sinto confortável” no papel, acreditando que o povo ucraniano o tinha visto como uma história da Cinderela. Nos primeiros tempos surpreendeu na luta contra oligarcas ucranianos, uma posição popular tal como o desafio à Rússia ou os investimentos que tinha anunciado em novas estradas, apesar da débil situação económica do país — segundo a Bloomberg a Ucrânia precisa de cinco mil milhões de dólares para estabilizar financeiramente.

Visto como uma pessoa movida mais pela vaidade do que pela ganância, Zelensky continua a ser um dos políticos mais populares. Em julho de 2021, 30% dos eleitores diziam que votariam de novo no comediante feito político. Mas isto aconteceu antes da revelação do envolvimento de Zelensky nos Panama Papers. Os documentos mostram a sua presença numa companhia offshore, que alegadamente foi transferida para um amigo semanas antes da sua eleição presidencial.

Ze, o candidato que já foi Presidente de faz-de-conta

A 25 de janeiro de 1975, no seio de uma família judia, Volodymyr nascia no sudeste da Ucrânia, em Kryvyi Rih, um centro industrial com cerca de 600 mil habitantes. Os pais nada tinham a ver com o meio artístico: Oleksandr Zelensky era um matemático, professor responsável pelo departamento de cibernética do Instituto de Economia de Kryvyi Rih e a mãe, Rimma, era engenheira. Os números faziam parte do quotidiano da família. Também aí nasceu a sua mulher, Olena Zelenska, com quem se casaria em 2003. Foram colegas de escola, mas só mais tarde os destinos ficaram unidos em matrimónio. Têm dois filhos.

Mas, ainda antes de entrar para a escola primária, Volodymyr mudou-se com os pais para a Mongólia, devido a compromissos profissionais do senhor Zelensky, e por lá aprenderia a língua mongol. Por falta de prática, hoje o candidato a Presidente, que é casado e pais de dois filhos, já não sabe dizer uma palavra daquela língua estrangeira.

Em criança, Ze sonhava ser guarda fronteiriço. Mais tarde, desejou ser diplomata. Acabaria por estudar Direito na sua cidade natal, mas não praticou advocacia um único dia da sua vida. Foi quando decidiu participar no programa KVN, pela equipa ucraniana, que a sua vida mudou para sempre.

O KVN — siglas de Klub Vesyólykh i Nakhódchivykh que, numa tradução livre, traduz-se por Clube das Pessoas Divertidas e Inventivas — é uma competição internacional de humor que foi transmitida pela primeira vez em 1961, ainda no tempo da União Soviética. Os participantes, normalmente universitários, competem entre si dando respostas engraçadas e apresentando sketches humorísticos.

O programa chegou a ser banido da televisão russa, mas regressou em 1986 durante a Perestroika. Pela competição, já passaram equipas dos EUA, de Israel ou da Alemanha. E, claro, a equipa de Zelensky.

Ainda nos seus tempos de universidade, com 17 anos, Volodymyr juntou-se ao grupo ucraniano do KVN. Acabaria por criar a sua própria equipa, o Kvartal 95, cujo sucesso o levaria a fazer digressões pelos países que compunham a antiga União Soviética. Desentendimentos com o KVN, levaram a que o Kvartal 95 se autonomizasse: a equipa que divertia os ucranianos com pequenos ensaios de stand-up ao estilo do Leste, passou a produzir programas televisivos. Estava dado o primeiro grande passo para que Ze se tornasse um dos mais conceituados e bem sucedidos empresários da TV ucraniana.

A curva foi em sentido ascendente. Escreveu programas, apresentou-os e entrou na versão ucraniana do “Dançando com as Estrelas”. Mas há mais de 10 anos, a participação na sua primeira longa metragem valeu a Zelensky o reconhecimento de uma fatia mais abrangente do público.

“Lyubov v Bolshom Gorode” (tradução livre: “Amor na Grande Cidade”, de 2009) era uma comédia romântica, cheia de estrelas queridas dos ucranianos e que teve sucesso de bilheteiras suficiente para chegar à terceira sequela. As participações no grande ecrã continuaram, aumentando a influência de Zelenski de dia para dia, enquanto que a sua série “Swat”, de 2008, ia atingindo audiências tão elevadas que chegou à sua sétima temporada.

Pelo meio, a arte imitava a vida. Em 2015, Poroshenko ocupava o Palácio de Mariyinsky, quando Ze começou a “liderar” o país na série televisiva “O Servo do Povo”, ideia da produtora de Zelensky, a Kvartal 95. Vasily Goloborodko, um professor de história de Kiev, torna-se famoso depois de um acesso de raiva. Enquanto o professor critica tudo o que se passa à sua volta, sem poupar nos palavrões, um estudante filma-o. A partir daí, as redes sociais fazem o resto e Goloborodko, interpretado por Zelensky, é eleito Presidente da Ucrânia. A série tornou-se o programa com maior audiência do país e em dezembro de 2017 a equipa do Kvartal 95 registou o nome no Ministério da Justiça como partido político.

A ideia, na altura, era impedir que terceiros usassem o nome com propósitos políticos cínicos. Em 2019, foi pelo partido político “O Servo do Povo” que Zelensky se tornou presidente a sério.

Foi um ano depois, poucos minutos antes da meia-noite, que Volodymyr Zelensky se posicionou frente às câmaras do canal 1+1 para anunciar a sua candidatura a presidente. No dia seguinte, no mesmo canal, estreava-se a terceira temporada de “O Servo do Povo”.

Enquanto os outros fazem comícios, Zelensky fala às multidões ao estilo de espetáculos de stand-up (AFP/Getty Images)

Uma campanha pouco tradicional

“Aqui não houve campanha política”, disse Zelensky, poucos dias antes de os ucranianos irem a votos, dirigindo-se a uma multidão de apoiantes, num recinto cheio, onde cabem cerca de 30 mil pessoas. “Para que é que havia de haver campanha? Vocês são todos pessoas espertas, sabem o que fazer no dia 31 de março, certo?”

A campanha de Ze foi tudo menos convencional. Fugiu das grandes entrevistas, dos debates com os seus opositores e focou toda a campanha nas redes sociais, em especial no Youtube, e na luta contra a corrupção. Mesmos as suas intervenções junto do eleitorado estiveram mais próximas de espetáculos de comédia do que comícios partidários.

A atmosfera aqui é tal que se o Petro [Poroshenko] estivesse aqui, provavelmente também votaria em mim”, disse num desses momentos, transmitido em streaming no Facebook e citado pelo Financial Times.

Pelo caminho, a terceira temporada de “O Servo do Povo” estreou-se em cima da data da votação presidencial — provavelmente fazendo mais pela eleição de Zelensky do que qualquer tempo de antena tradicional.

Enquanto analistas e a classe política ucraniana foram desvalorizando Ze e as suas hipótese de vir a liderar o país, as sondagens continuavam a pô-lo no topo das preferências dos eleitores. E nem mesmo as acusações de que mais não será do que um fantoche do oligarca ucraniano Igor Kolomoyski, que detém 70% do canal 1+1, fizeram o povo mudar o sentido de voto.

A verdade é que ninguém sabe exatamente de onde veio o dinheiro que sustentou a campanha de Ze e que o próprio tem dito sempre que foi suportada por amigos. Porém, ressalve-se que a família está longe de ter problemas financeiros: segundo a imprensa ucraniana são proprietários de cinco apartamentos em Kiev e uma casa de campo. Só mais tarde ficou conhecida a sua ligação a empresas offshore.

Na altura, questionado sobre futuros encontros com líderes mundiais, Zelensky não parecia estar intimidado. Sobre Vladimir Putin, presidente da Rússia, disse, então, que só se encontrariam com o presidente russo quando a Crimeia fosse devolvida à Ucrânia: “Se me encontrar com Putin [depois disso], dir-lhe-ei: ‘Finalmente devolveu-nos os nossos territórios. Mas quanto é que está preparado para pagar pela sua ocupação?’” Eis um caso em que a ficção venceu a realidade. Agora a conversa seria diferente.

E Zelensky já não se pode servir do guião da sua história televisiva.  Na mensagem desta quinta-feira, transmitida nas redes sociais, enfrentou Putin:  “Quando atacarem, verão as nossas caras, não as nossas costas”. E continua empenhado em ser visto: “A televisão russa não vai mostrar este vídeo, mas o povo russo deve vê-lo. A verdade tem de ser conhecida. E a verdade é que isto tem de terminar já, antes que seja tarde demais.”

(Parte deste artigo já tinha sido publicado em perfis anteriores)