O presidente ucraniano fez a pergunta e deu a resposta: “Quem está pronto para lutar connosco? Eu não vejo ninguém”. Enquanto tentava controlar as lágrimas, Volodymyr Zelensky acusou esta quinta-feira a União Europeia (UE) e a NATO de deixarem a Ucrânia “sozinha” contra o exército russo, num discurso ao final do dia em que a Rússia invadiu o seu país. “Eu sei que todos conseguem ver isto. Todos. Mas não estou a ver o que vão fazer”, disse ainda.
Já esta sexta-feira o presidente ucraniano publicou um vídeo no Twitter em que garante que está em Kiev: “Estamos aqui. Estamos em Kiev. Estamos a defender a Ucrânia”.
Владимир Зеленский опубликовал видео из Киева.
«Мы тут. Мы в Киеве. Мы защищаем Украину», – подписал он эти кадры. pic.twitter.com/r72ezM5DAI
— РБК (@ru_rbc) February 25, 2022
Zelensky não foi o único a condenar a ausência de apoios para uma resposta contra a ofensiva russa. Já esta sexta-feira, o homólogo turco veio acusar a NATO de não ter “tomado medidas mais decisivas” e ainda acusou a União Europeia de ter “falta de determinação na sua abordagem” ao ataque concretizado a partir da madrugada de quinta-feira. “Tudo o que fazem é dar conselhos e avisos à Ucrânia”, lamentou Recep Tayyip Erdogan, cujo país é membro da Aliança Atlântica.
Do lado da NATO, a mensagem tem sido invariavelmente a mesma: a aliança militar está atenta ao desenrolar da situação da Ucrânia e garante que ao mais pequeno sinal de que um aliado corre perigo vai agir — mas não haverá militares da NATO em território ucraniano.
Mas, então, qual a razão pela qual a NATO e a UE não intervêm neste conflito?
Desde logo, a NATO não intervém porque a Ucrânia não é um estado-membro, que conta com 30 membros. Depois, porque nenhum deles foi atacado e a NATO não pode acionar o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, assinado há mais de 70 anos, que define que um ataque armado a um aliado ou vários “será considerado um ataque a todas [as partes]” e, “consequentemente”, cada um dos aliados “prestará assistência à parte ou partes assim atacadas”, numa defesa coletiva.
O que diz o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte?
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“As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte.
Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência desse ataque serão imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho de Segurança tiver tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais”
NATO
“A não ser que haja um escalar para os Estados vizinhos, nomeadamente para algum membro da Aliança Atlântica”, equaciona Liliana Reis, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), em declarações ao Observador. “Se houver efetivamente um ataque — e pode ser cibernético — a alguma infraestrutura crítica ou a algum elemento do Estado, por exemplo, da Roménia, Polónia, Hungria — estes são os aliados da NATO que fazem fronteira com a Ucrânia —, a Aliança Atlântica poderá intervir”, explica, rematando: “Neste momento, não.”
Com tropas colocadas em países vizinhos da Ucrânia, o major-general Arnaut Moreira afirma que “a NATO não está parada”. Em declarações ao programa “A História do Dia” da Rádio Observador, explicou que “a NATO tem de ter um tempo suficiente porque as decisões são sempre tomadas por consenso”. “É preciso haver consenso dos 30 membros para que seja concebida uma resposta a esta ameaça. Olhando para os dados que temos neste momento, parecia suicidário para o regime russo afrontar a NATO“, acrescentou.
Então e a União Europeia? “Está a manter afastada a cláusula de assistência mútua do número 7 do artigo 42.º do Tratado de Lisboa”, afirma a investigadora Liliana Reis. Esta cláusula prevê que “se um Estado-Membro vier a ser alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados-Membros devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance”, como se lê no documento. No entanto, a Ucrânia não faz parte da UE e, nesse sentido, não pode acionar o mecanismo que, tal como a NATO, permitiria uma intervenção.
O que diz o número 7 do artigo 42.º do Tratado de Lisboa?
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“Se um Estado-Membro vier a ser alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados-Membros devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance, em conformidade com o artigo 51.o da Carta das Nações Unidas. Tal não afeta o caráter específico da política de segurança e defesa de determinados Estados-Membros.
Os compromissos e a cooperação neste domínio respeitam os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que, para os Estados que são membros desta organização, continua a ser o fundamento da sua defesa coletiva e a instância apropriada para a concretizar.”
União Europeia
A investigadora em Relações Internacionais do IPRI defende que “a União Europeia está com receio da possibilidade de utilização do poder nuclear por parte de Putin” e acredita que a UE está a evitar intervir militarmente devido à ameaça que Putin fez logo no dia da intervenção:
Houve uma ameaça clara de utilização da força nuclear. A ameaça que ele deixou — de represália nunca antes vista — leva-nos para outro tipo de instrumentos militares e esses instrumentos sabemos que são nucleares. A UE neste momento está a querer evitar a todo o custo — e muito bem — a possibilidade de utilização do poder nuclear por parte da Rússia”, disse.
Moscovo já fez, aliás, novas ameaças. Esta quinta-feira, os alvos foram a Finlândia, que faz fronteira com o território russo, e a Suécia. “É evidente que a adesão da Finlândia e da Suécia à NATO, que é principalmente um bloqueio militar, teria graves consequências militares e políticas que obrigariam a que o nosso país tomasse medidas recíprocas”, disse a porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros russo.
????#Zakharova: We regard the Finnish government’s commitment to a military non-alignment policy as an important factor in ensuring security and stability in northern Europe.
☝️Finland’s accession to @NATO would have serious military and political repercussions. pic.twitter.com/eCY5oG23rL
— MFA Russia ???????? (@mfa_russia) February 25, 2022
A investigadora Liliana Reis acredita que “nenhum europeu quer ver um confronto nuclear em território europeu“. Mas está convencida de que se vier a acontecer um ataque a um estado-membro, “a UE e a NATO não terão outra opção a não ser intervir”.
É também esta a visão do secretário de Estado das Forças Armadas do Reino Unidos. James Heappey acredita que quer as tropas britânicas, quer as da NATO, não devem entrar na Ucrânia devido a um “risco de erro de cálculo”. “Todos nós devemos ter consciência do risco de um erro de cálculo” e como um conflito pode escalar “muito rapidamente” e “desnecessariamente”.
Intervenção da UE e NATO tem de ser última opção: “Não podemos avançar para proteção da população ucraniana, deixando todas as outras vulneráveis”
Então, o que pode travar este conflito? “A guerra tem um grau de imprevisibilidade muito grande. Mas tem tempos: não podemos utilizar a força máxima e escalar para algo completamente imprevisível. Não podemos avançar para a proteção da população ucraniana, deixando todas as outras completamente vulneráveis. Por mais que isto custe”, defende Liliana Reis, especialista em Relações Internacionais.
Por isso, há passos que têm de ser dados primeiro. Esta madrugada já foi aprovado um novo pacote de sanções. Mas a investigadora tem dúvidas “se terá algum efeito”. E explica: “A Rússia antes de avançar para estar intervenção preveniu-se do ponto de vista das reservas financeiras que neste momento dispõe. Depois, há outros parceiros financeiros, nomeadamente a China. As sanções económicas e financeiras até poderão acabar por penalizar mais os europeus do ponto energético.”
Além disso, as “sanções vão demorar tempo a produzir efeito”. Arnaut Moreira tem dúvidas sobre a sua eficácia. “O ocidente tem reagido a estas crises e conflitos através de sanções, mas que efeitos produziram? Cuba mudou de regime? A Coreia do Norte mudou de regime? O Irão mudou o seu programa nuclear? As sanções económicas só produzem efeito a longuíssimo prazo e se produzirem”, disse à Rádio Observador.
Uma possível solução, caso as sanções não tenham o efeito desejado, passa por “um empenhamento da comunidade internacional, nomeadamente da China, a chamar Putin a uma round table e às negociações“, defende a especialista em declarações ao Observador. “Nós não sabemos é se Putin está disponível até a Ucrânia capitular. Ele diz que não quer a tomada da Ucrânia de assalto para o grande império da mãe Rússia, mas quer que a Ucrânia renuncie a toda as suas capacidades militares. Não sei se o presidente ucraniano está disposto a isto”, explica.
De qualquer forma, uma intervenção da UE e da NATO deve ser “a última opção”. “The last resource“, enfatiza a investigadora Liliana Reis. E alerta: “Se viermos a ter uma intervenção da UE ou da NATO, temos de ter a perfeita noção de que foram esgotadas todas as opções diplomáticas“.