Esta segunda-feira, uma jornalista e produtora do Canal 1 russo interrompeu o noticiário da noite para protestar contra a invasão da Ucrânia. Imagens do momento, divulgadas nas redes sociais, mostram Marina Ovsyannikova segurando um cartaz onde é possível ler, em russo: “Parem com a guerra. Não acreditem na propaganda. Aqui, estão a mentir-vos”. A transmissão foi abruptamente interrompida e a imagem substituída por uma peça jornalística sobre um hospital.

Após a interrupção, Marina Ovsyannikova terá sido levada para uma sala do canal de televisão estatal, onde foi depois detida pelas autoridades russas, que a levaram para local incerto. Os seus advogados tentaram em vão contactá-la, e os seus apelos juntaram-se aos da comunidade internacional, que mostrou preocupação pela integridade física da jornalista e produtora russa do Canal 1, onde diz ter colaborado durante anos na disseminação da propaganda do Kremlin. Até que decidiu dizer “basta”.

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Um amigo da jornalista, que falou com o The Guardian sob condição de anonimato, disse que a “raiva” que Marina Ovsyannikova, filha de um ucraniano, sente pelo regime de Vladimir Putin tem vindo a aumentar desde que a guerra começou, há cerca de um mês. “Há dois dias, ela disse-me que ia fazê-lo”, contou ao jornal britânico, que teve oportunidade de ver as mensagens trocadas entre os dois. De acordo com o The Guardian, estas indicam que Ovsyannikova tinha noção das eventuais consequências dos seus atos.

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“Ela é tão corajosa por falar. Estou muito preocupado com ela, claro”, admitiu o amigo, que a descreveu como “uma mulher com um grande coração”, que “realmente se preocupa com as outras pessoas” e com aqueles que lhe são mais próximos. Outra fonte ouvida pelo mesmo jornal disse que Ovsyannikova é uma pessoa “empática”. “Ao mesmo tempo, como qualquer pessoa que trabalha para o estado russo, tem muito medo do sistema e de perder a vida que construiu”, acrescentou o amigo. “Até à noite passada.”

Jornalista interrompe noticiário russo com cartaz contra a guerra: “Não acreditem na propaganda”

Num vídeo gravado previamente e divulgado nas redes sociais, Marina Ovsyannikova declarou ter “vergonha” de colaborar há vários anos na divulgação da propaganda do Kremlin, disseminada a partir do canal estatal onde trabalha. “Não fizemos nada em 2014 quando tudo começou. Não protestámos quando o Kremlin envenenou [o líder da oposição Alexei] Navalny. Sentámo-nos em silêncio e ficámos a observar este regime inumano. Agora, o mundo inteiro virou-nos as costas e as dez gerações seguintes não irão lavar esta guerra fratricida”, afirmou.

A mesma fonte disse que nunca esperou que a jornalista e produtora levasse o seu plano adiante, acrescentando que Ovsyannikova tinha uma boa vida e que viajava muito. “Chorei quando a vi na televisão. Percebi que a vida dela nunca mais seria a mesma. Ela é uma heroína.”

Depois de 24 horas desaparecida, Marina Ovsyannikova foi ouvida em tribunal. Deputada britânica diz que devia ser nomeada para o Nobel da Paz

Não são apenas os amigos próximos que consideram Marina Ovsyannikova uma heroína. Desde a noite de segunda-feira, têm-se multiplicado as reações ao ato corajoso da jornalista e produtora russa, que se tornou um símbolo do movimento antiguerra na Rússia, que Moscovo tem a todo o custo tentado silenciar. Reagindo ao caso, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, classificou a demonstração de Ovsyannikova como “hooliganismo”, defendendo que o Canal 1 tem feito um trabalho de informação “objetivo”, “oportuno” e “rigoroso”.

Do outro lado, Volodymyr Zelensky agradeceu o apoio aos “russos que continuam a espalhar a verdade”, posição ecoada pela União Europeia, que esta terça-feira aplaudiu a coragem dos cidadãos russos que exprimem a sua oposição ao regime de Vladimir Putin.

A deputada britânica Nickie Aiken considerou que a jornalista devia ser considerada para o Prémio Nobel da Paz, o que enviaria uma “mensagem clara ao povo russo”. Em declarações ao jornal britânico Evening Standard, disse que Ovsyannikova “mostrou mais coragem em dez segundos do que muitos de nós numa vida inteira”.

“Nomeá-la para o Prémio Nobel da Paz enviaria uma mensagem clara ao povo russo, de que a nossa hostilidade é contra os seus líderes e não contra ele e que a democracia e liberdade são valores pelos quais vale a pena lutar”, declarou a deputada, que se mostrou receosa pelo destino da jornalista depois da sua “postura corajosa contra o regime brutal de Putin”.

Também as Organização das Nações Unidas se mostrou preocupada com a situação da jornalista. A porta-voz do gabinete para os Direitos Humanos pediu às autoridades russas que Ovsyannikova não seja “alvo de represálias por exercer o seu direito à liberdade de expressão”, citou o The Guardian. Uma situação que parecia cada vez mais provável à medida que o tempo ia passando e a jornalista continuava desaparecida.

Apesar da preocupação dos advogados de defesa, que estiveram 24 horas sem saber do paradeiro da sua cliente, e da comunidade internacional, Marina Ovsyannikova apareceu esta terça-feira no tribunal do distrito de Ostankino, em Moscovo. A jornalista russa fez-se acompanhar pelo advogado bielorrusso Anton Hashynsk, que tem licença para exercer na Rússia. Não foram divulgadas informações sobre o paradeiro de Ovsyannikova desde que foi detida no Canal 1.

Segundo o jornal russo Novaya Gazeta, o tribunal considerou que foi cometida uma “infração administrativa” e que a jornalista organizou um evento público sem o coordenar com a direção do canal de televisão estatal. Tinha sido noticiado que a jornalista e produtora seria acusada de espalhar publica e conscientemente informações falsas sobre as movimentações das forças russas na Ucrânia, uma acusação que já levou ao encerramento de pelo menos dois órgãos de comunicação independentes na Rússia. Ovsyannikova declarou-se inocente.

Max Seddon, jornalista do Financial Times em Moscovo, que tem acompanhado o caso de perto, disse no Twitter que Ovsyannikova podia ter sido condenada, no máximo, a dez dias de prisão. De acordo com a BBC, por agora, a jornalista vai ter de pagar uma multa de 20 mil rublos (cerca de 238€) pela publicação de um vídeo nas redes sociais em que apelava a que os russos saíssem à rua para protestar contra a guerra, ainda que não seja claro se vai ou não ser sujeita a outro julgamento por mostrar o cartaz.

À saída do tribunal, Marina Ovsyannikova contou que “tomou essa decisão por si mesma”, porque é contra a decisão de a Rússia ter “começado esta invasão”. “Foi realmente terrível.” “Quero agradecer a todos pelo apoio, amigos e colegas. Têm sido dias muito difíceis na minha vida. Passei dois dias sem dormir. Fui interrogada por mais de 14 horas”, relatou Marina Ovsyannikova, citada pela BBC.

Marina Ovsyannikova acusou as autoridades russas de inicialmente recusarem que lhe fosse fornecida ajuda legal, não tendo tido direito a um advogado durante horas. “Eles não me deixaram entrar em contacto com os meus familiares. Eles não deram qualquer ajuda legal. Estive numa condição difícil”, lembrou.

Artigo atualizado às 19h57